“Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”
(Shakespeare)
Economias em confronto
A começar pela epígrafe que presta homenagem a um dos padrinhos da cultura ocidental, este texto desenvolve algumas reflexões sobre o xadrez da política mundial, examinando como China e Estados Unidos disputam não apenas mercados e prestígio cultural, mas também modelos jurídicos que balizam expectativas de segurança, liberdade e desenvolvimento.
Em outras palavras, investigaremos o abalo contemporâneo do American Dream, a projeção de um “sonho chinês” erigido como contraparte simbólica e, sobretudo, as interseções desse embate com o Direito.
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Em resumo, Donald Trump chegou à Casa Branca prometendo “trazer de volta o sonho americano”. Para agir, apontou a China como responsável pelo esvaziamento econômico dos Estados Unidos e inaugurou a atual guerra comercial.
De lá para cá, contudo, o tabuleiro ganhou uma peça brasileira. Neste mês, Washington decretou tarifa de 50% sobre toda a mercadoria brasileira. Enquanto Brasília calcula retaliações e investidores recalculam o risco-país, cada contêiner que deixa Santos converte-se em termômetro de poder.
Vista sob prisma simbólico, a manobra americana não se limita a punir parceiros. Ela simultaneamente abre novas frentes de atrito e revela a inquietante ironia de que o maior adversário dos Estados Unidos talvez não sejam os países taxados, mas a própria ansiedade de conter a erosão de sua hegemonia — ansiedade essa que, ao fim e ao cabo, se traduz no esforço de manter vivo o sonho que projeta para si e para o mundo.
Nesse contexto de embates, não é novidade para ninguém que ciclos de ascensão e queda marcam toda a história. Nesse ciclo, o Ocidente costuma reler Tucídides e imaginar o choque inevitável entre potência estabelecida e desafiante. Já Pequim prefere a metáfora da maratona: evoca humilhações coloniais do século 19, promete “rejuvenescimento nacional” e convoca o povo a pôr o sucesso coletivo acima do êxito individual.
Ainda assim, metas grandiosas enfrentam obstáculos muito concretos: população que envelhece rápido, grande desemprego entre a população mais jovem, a chamada “dívida oculta”[1] do país que assombra governo e investidores, regiões rurais que pedem serviços de saúde e educação e uma classe média urbana que tem exigido mais e mais direitos.
Quanto aos números, o paradoxo é claro. A China fabrica grande parte dos bens industriais do planeta, inova em várias áreas e dispõe de enormes reservas cambiais. Em contrapartida, precisa lidar com pressões ambientais, ajustes no mercado imobiliário e a difícil transição de obras de infraestrutura para serviços de maior valor agregado.
E essa mesma realidade vale para parceiros: se a compra chinesa de minério desacelera, mineradoras brasileiras e australianas sentem o baque. Se faltar grão no porto de Xangai, produtores do meio-oeste dos EUA comemoram. A lição é simples: num mundo integrado, nem Pequim nem Washington podem fingir autossuficiência absoluta.
Direito e poder
No exterior, o “sonho chinês” ganha forma de obras que ligam a Ásia Central ao Golfo da Guiné. Para muitos governos africanos, receber uma ferrovia pronta em três anos vale mais que promessas quilométricas de doadores tradicionais. Em troca, os contratos dão preferência a empresas chinesas.
Contudo, essa diplomacia que encanta pela rapidez também desperta receios: se a dívida aperta ou a qualidade não corresponde, o parceiro teme perder ativos. Aos olhos do leigo, é como aceitar um empréstimo generoso do vizinho rico: o dinheiro chega depressa, mas a escritura da casa pode virar garantia.
A dimensão jurídica desse experimento oferece um prisma privilegiado de análise. Quando, em 2014, Pequim anunciou uma “nova era do Estado de Direito”, a fórmula já continha a nuance essencial: o que ali se chama rule of law aproxima-se, na prática, de um rule by law, isto é, da utilização da lei como instrumento do próprio poder.
No modelo chinês, a lei é aplicada com rigor, mas sua finalidade derradeira é manter a harmonia social definida pelo partido. E um dado que intriga todo tipo de observador externo ainda é a ausência de indignação doméstica: para grande parte dos chineses urbanos, a troca é aceitável — crescimento rápido, segurança nas ruas e serviços digitais eficientes em vez de um catálogo amplo de liberdades políticas típicas do Ocidente.
Em outras palavras, direitos fundamentais, no contexto chinês, aparecem culturalmente condicionados: liberdade de expressão vale, desde que não ameace a coesão nacional. Liberdade religiosa, desde que não desafie a autoridade estatal. A evidência flagrante foi a chamada campanha 709 — onda de prisões e interrogatórios contra advogados de direitos humanos em todo país. Ao empresário, resta incorporar essa lógica nos contratos e ter plena consciência de que a última palavra pode vir do Comitê Central.
Do outro lado do Pacífico, a experiência jurídica norte-americana ainda figura entre os referenciais do imaginário ocidental, em especial pelo conjunto de liberdades civis — expressão, associação, igualdade jurídica — que cristalizou desde o fim do século 18. Mesmo atravessada por tensões internas, essa moldura normativa continua a dialogar com cartas europeias e constituições latino-americanas, fornecendo um idioma comum quando se discutem limites ao poder estatal e garantias individuais.
Sonhos e narrativas
Ante o exposto, estamos diante de duas projeções que competem não exatamente pela exclusão mútua, mas pela definição dos parâmetros de legitimidade. Sendo assim, urge reconhecer que qualquer modelo jurídico-econômico traz consigo benefícios e fardos inevitáveis.
O chinês entrega crescimento acelerado e grandes obras, mas cobra renúncia a liberdades civis. Por outro lado, o modelo americano privilegia direitos individuais e inovação, porém convive com algumas desigualdades e impasses legislativos que travam reformas cruciais.
Não existe almoço grátis, numa famosa frase da cultura popular: cada sociedade decide qual preço paga e qual valor é considerado suficiente. Por certo, importa repensar questões jurídico-econômicas sem o véu da ignorância que a ideologia costuma nos impor.
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Numa palavra final, retomemos Shakespeare: se os sonhos são feitos da mesma matéria que nos sustenta, importa avaliá-los à luz de suas consequências tangíveis. Em síntese, a comparação entre Estados Unidos e China ensina que crescimento econômico sem direitos sólidos pode gerar prosperidade questionável, enquanto liberdade sem coesão social pode paralisar reformas imprescindíveis.
E reconhecer as forças e fraquezas de ambos — sem deslumbramento nem maniqueísmo — é passo necessário para qualquer país que aspire moldar as próprias escolhas, distinguindo que parcela desse imaginário merece ser erguida como ideal coletivo e qual convém deixar dissolver-se no ar.
Com efeito, veja-se que o futuro já começou a ser ressignificado na medida em que cada tarifa e cada narrativa simbólica redesenha, em tempo real, as fronteiras do mundo que desejamos habitar. E a conclusão final não poderia ser outra: mais do que nunca, vale tomar cuidado para nunca confundir sonho importado com vocação própria.
[1] De acordo com o Fundo Monetário Internacional, a chamada “dívida oculta” dos governos locais chineses teria atingido cerca de US$ 8,3 trilhões — o equivalente a 60 trilhões de yuans — ao final de 2023, representando aproximadamente 47,6% do Produto Interno Bruto da China