Tarifas de Trump contra o Brasil: uso político do comércio e resposta pelo direito

As tarifas comerciais unilaterais de 50% impostas pelo governo Trump sobre os produtos brasileiros configuram uma violação simultânea ao regime jurídico internacional e à ordem constitucional norte-americana.

Trata-se de uma medida política com verniz protecionista, adotada sem base técnica e com evidente desvio de finalidade: reequilibrar supostos déficits comerciais e punir movimentos diplomáticos do Brasil, como a aproximação com o bloco ampliado dos Brics. A leitura jurídica, no entanto, é inequívoca — essa política tarifária é substancialmente ilegal.

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Sob o prisma do direito internacional, a medida viola frontalmente os pilares do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em especial: (i) o princípio da nação mais favorecida (art. I), (ii) a proibição de restrições quantitativas (art. XI), e (iii) o tratamento nacional (art. III).

A tentativa de escudo pela exceção de segurança nacional, prevista no art. XXI do GATT, tampouco se sustenta. Essa cláusula não confere ao Estado parte o poder de autodeterminação absoluta. Ao contrário, a jurisprudência recente da Organização Mundial do Comércio (OMC), construída a partir dos casos DS544 e DS548, já delimitou os contornos dessa exceção. A decisão de 2022 contra os EUA, nas disputas relativas às tarifas sobre aço e alumínio, afirmou expressamente que medidas com alegação genérica de risco à segurança nacional — sem fundamentação objetiva e verificável — não podem ser validadas.[1]

A imposição de tarifas de 50% sobre todos os produtos brasileiros repete e aprofunda os vícios que a OMC já condenou. A medida não é setorial, não responde a risco identificável e não demonstra qualquer correlação com a preservação da ordem interna norte-americana. É um instrumento econômico adotado com motivação política e fins eleitorais. Por isso mesmo, é incompatível com o direito internacional do comércio, que exige previsibilidade, proporcionalidade e base normativa clara para restrições comerciais excepcionais.

No plano do direito interno dos Estados Unidos, a fragilidade jurídica da medida é igualmente evidente. A base legal alegada — o International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), de 1977 — é uma legislação criada para permitir ao Executivo responder a emergências internacionais, como terrorismo, conflitos armados ou ameaças cibernéticas.

Não se presta, portanto, à função de instrumento geral de política tarifária.[2] O uso reiterado dessa norma como justificativa para a imposição de tarifas aduaneiras constitui uma distorção de sua finalidade legislativa e um atentado à separação de poderes.

A Corte de Comércio Internacional (CIT) reconheceu esse abuso no caso V.O.S. Selections v. United States[3], em maio de 2025. A sentença declarou inconstitucionais as tarifas de 50% impostas em abril, apontando que Trump extrapolou os limites legais da autoridade presidencial conferida pela IEEPA.

A decisão da Corte de Comércio Internacional foi especialmente contundente ao interpretar os limites materiais da IEEPA. O tribunal entendeu que o uso da IEEPA com fins de política comercial viola não apenas o texto, mas a própria lógica da norma, cujo escopo está vinculado a ameaças reais à segurança nacional em contextos excepcionais — como terrorismo, conflitos armados ou emergências cibernéticas.

A corte também ressaltou que a ausência de critérios objetivos para a decretação da emergência torna o ato presidencial incompatível com os princípios constitucionais de legalidade estrita e de separação de poderes. A sentença determinou a devolução dos valores cobrados com base nas tarifas, reconhecendo seu caráter confiscatório e arbitrário.

Atualmente, o caso encontra-se em grau de apelação no Federal Circuit, com julgamento previsto para o segundo semestre de 2025. Embora a decisão final ainda esteja pendente, o precedente já vem sendo citado em outros litígios tarifários e tem potencial de balizar o controle judicial sobre atos econômicos unilaterais do Executivo norte-americano, consolidando uma barreira institucional contra a instrumentalização política do comércio internacional.

O caso Raimondo v. United States[4], julgado pela Suprema Corte em 2024, reforça essa interpretação. A corte reverteu a deferência tradicional a interpretações administrativas do Executivo em assuntos regulatórios e passou a exigir respaldo legal claro e inequívoco para ações com grande impacto econômico.

Na prática, esse precedente reduz drasticamente o espaço para que o Executivo norte-americano utilize fundamentos vagos — como “interesse nacional” ou “equilíbrio econômico” — como justificativa para atos unilaterais com efeitos sistêmicos. A jurisprudência emergente mostra uma inflexão relevante: o Judiciário americano caminha para limitar a margem discricionária presidencial na economia, exigindo do Congresso papel ativo na autorização de medidas restritivas como tarifas comerciais.

Essa reconfiguração da deferência judicial é especialmente relevante diante do histórico recente de abusos administrativos no campo do comércio internacional. O uso reiterado da IEEPA como via paralela ao processo legislativo, com o objetivo de impor medidas econômicas de amplo alcance, representa não apenas um desvio de finalidade normativa, mas também uma erosão da cláusula constitucional de separação de poderes e da regra de não delegação implícita.

O sistema constitucional norte-americano é claro ao atribuir ao Congresso a competência originária para legislar sobre tarifas e tributos. Qualquer tentativa do Executivo de se sobrepor a essa prerrogativa fere o próprio fundamento democrático da política comercial americana.[5]

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A conjunção desses elementos — a violação das normas multilaterais, a ausência de base legal doméstica e a jurisprudência restritiva dos tribunais americanos — revela a vulnerabilidade jurídica da medida. Trata-se de uma tarifa juridicamente insustentável, que poderá ser revertida tanto na OMC quanto no próprio sistema judicial dos EUA.

Em um momento de crescente tensão geoeconômica, o recurso a tarifas unilaterais com motivações políticas deve ser contido pelas instituições jurídicas, nacionais e internacionais. O comércio internacional não pode ser regido por impulsos protecionistas disfarçados de emergência.

É preciso reafirmar o compromisso com a legalidade, a previsibilidade e a primazia das regras — pilares que sustentam o sistema multilateral desde Bretton Woods. O Brasil, ao invés de retaliar de forma precipitada, deve apostar na força do direito e levar em consideração o desgaste interno que Trump pode sofrer com isso.

[1] MUNHOZ, Leonardo. Tarifas de Donald Trump e o fim do multilateralismo: funcionam? Money Times, 13 mar. 2025. Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/tarifas-de-donald-trump-e-o-fim-do-multilateralismo-funcionam-pads/. Acesso em: 10 jul. 2025.

[2] UNITED STATES. International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), Public Law 95–223, Title II, 91 Stat. 1626. Approved Dec. 28, 1977. Disponível em: https://uscode.house.gov/view.xhtml?req=granuleid:USC-prelim-title50-section1701. Acesso em: 10 jul. 2025.

[3] UNITED STATES. Court of International Trade. V.O.S. Selections, Inc. v. United States, No. 24-00157, decided May 28, 2025. Disponível em: https://www.cit.uscourts.gov/sites/cit/files/24-00157.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025. Ver WilmerHale. What You Need to Know About the Federal Court Decisions Threatening the Trump Administration’s Tariff Agenda, Client Alert, 5 jun. 2025. Disponível em https://www.wilmerhale.com/en/insights/client-alerts/20250605-what-you-need-to-know-about-the-federal-court-decisions-threatening-the-trump-administrations-tariff-agenda . Acesso em: 10 jul. 2025.

[4] SUPREME COURT OF THE UNITED STATES. Loper Bright Enterprises v. Raimondo, No. 22–451, 28 jun. 2024. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/23pdf/22-451_3e04.pdf. Acesso em: 10 jul. 2025.

[5] BERRY, Thomas A.; SKORUP, Brent; BRANDT, Charles. Even in Emergencies, the President Cannot Seize Congress’s Tariff Powers. Cato Institute, Washington, D.C., 15 abr. 2024. Disponível em: https://www.cato.org/blog/legal-brief-even-emergencies-president-cannot-seize-congresss-tariff-powers. Acesso em: 10 jul. 2025.

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