PL 1087: entre o discurso da justiça fiscal e a incoerência

O substitutivo ao PL 1087/2025, relatado pelo deputado Arthur Lira (PP-AL), foi apresentado como um avanço no caminho da progressividade e da justiça fiscal. De fato, o texto propõe uma reconfiguração importante do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), com a ampliação da faixa de isenção da tabela progressiva e a criação de uma “tributação mínima” sobre altas rendas e a reintrodução, um tanto apressada e irrefletida, da tributação sobre dividendos.

Mas por trás do discurso redistributivo, o modelo adotado revela graves omissões técnicas, falhas de raciocínio econômico e impactos no pacto federativo, que merecem ser examinadas com atenção.

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O projeto combina três medidas centrais: (i) redução do IRPF para rendas até R$ 7.350 mensais; (ii) instituição de uma tributação mínima para pessoas físicas com rendimentos superiores a R$ 600 mil anuais, cuja alíquota progride até 10%; e (iii) tributação dos dividendos remetidos ao exterior, também à alíquota de 10%. A retenção mensal sobre dividendos pagos no Brasil acima de R$ 50 mil funciona como antecipação do imposto mínimo, e a alíquota efetiva final é apurada por ocasião da declaração de ajuste anual.

A proposta, embora meritória no intuito de corrigir distorções regressivas do sistema atual, no qual o trabalho assalariado é mais tributado que o capital, apresenta sérios problemas estruturais. O primeiro, e mais evidente, é a ausência de qualquer revisão da carga fiscal da pessoa jurídica.

Enquanto países da OCDE que tributam dividendos mantêm alíquotas médias de 23% sobre o lucro empresarial e aplicam tributos adicionais moderados sobre os dividendos, o Brasil mantém sua alíquota nominal de até 34% (ou até 45% no setor financeiro) e ainda impõe à pessoa física uma carga adicional de até 10%, sem qualquer crédito ou mecanismo de compensação.

O projeto original previa um redutor destinado a evitar bitributação econômica excessiva, mecanismo este inspirado na lógica da integração empresa-acionista (corporate-shareholder integration), presente em países como Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Esse redutor seria aplicável quando a soma entre a alíquota efetiva da PJ e da PF ultrapassasse a carga teórica de 34% (ou 40% ou 45%, conforme o setor).

No substitutivo, porém, esse redutor foi suprimido. A justificativa apresentada foi a ausência de estimativas confiáveis e a dificuldade de cálculo em razão da assimetria de dados entre PJ e PF. Mas o efeito prático é a imposição de uma carga agregada que pode superar 44% sobre a renda derivada da atividade empresarial, sem qualquer compensação pela tributação anterior, o que rompe com o ideal de neutralidade fiscal e representa uma verdadeira ruptura técnica com a tradição comparada.

A base de cálculo da alíquota do imposto mínimo também suscita críticas. Embora o substitutivo tenha corretamente excluído títulos isentos como LCI, LCA, CRI e CRA, ele mantém na base de definição da alíquota diversos rendimentos que já foram integralmente tributados de forma exclusiva ou definitiva na fonte, como aplicações financeiras e JCP.

Ainda que esses rendimentos não integrem a base de cálculo do imposto mínimo em si, eles inflam a alíquota aplicável sobre os rendimentos tributáveis restantes, gerando uma cobrança marginal agravada sobre bases que já foram oneradas. Isso desafia o princípio da capacidade contributiva, pois trata rendimentos disponíveis e não disponíveis como equivalentes para fins de progressividade.

Além das distorções técnicas e econômicas, o substitutivo incorre em grave omissão quanto ao pacto federativo. Municípios e estados serão diretamente afetados pela ampliação da faixa de isenção do IRPF, que compromete a arrecadação do IR retido na fonte sobre os servidores públicos, receita que pertence aos demais entes federativos por força dos artigos 157 e 158 da Constituição.

A União promete compensação futura com base na arrecadação do imposto mínimo, mas essa fonte é incerta, sujeita a toda sorte de flutuações e imprevistos e, como reconheceu o próprio relator, difícil de estimar com precisão. Trata-se de uma promessa sem regra automática, sem fundo específico e sem qualquer garantia de perenidade.

A proposta também gera incentivos econômicos adversos. O pro labore, por continuar sendo despesa dedutível da base do IRPJ e CSLL, passa a ser mais vantajoso que o dividendo, que agora é tributado duplamente e sem compensação. Pela primeira vez desde a Lei 9.249/95, o sistema brasileiro favorece a remuneração do sócio pelo trabalho e não pelo capital, o que pode levar ao aumento do contencioso sobre distribuição disfarçada de lucros sempre que o montante de pro labore parecer excessivo e insegurança jurídica generalizada.

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A lógica de justiça fiscal que inspira a proposta é legítima. É preciso enfrentar, com coragem, as distorções de um sistema que tributa o trabalho e isenta o capital. Mas isso não pode ser feito à custa da técnica, da neutralidade, da segurança jurídica e do equilíbrio federativo. Tributar dividendos pode ser desejável — e até necessário —, mas jamais se deveria fazê-lo sem revisar simultaneamente a carga da pessoa jurídica, sem mecanismos de crédito ou integração, e sem respeitar o princípio da proporcionalidade entre renda disponível e imposto devido.

A verdade incômoda é que essa proposta surge como um remendo fiscal improvisado, concebido para cobrir o rombo orçamentário causado pela ampliação da faixa de isenção do IRPF e não como fruto de uma reforma estrutural, técnica e coordenada da tributação sobre a renda. Se quisermos um sistema progressivo, justo e competitivo, a correção da desigualdade não pode ser construída à custa da coerência do sistema nem da racionalidade econômica.

O substitutivo ao PL 1087 precisa ser revisto com inteligência, justiça e responsabilidade para que seus fins sejam atingidos sem comprometer a coerência do sistema tributário nacional, nem torná-lo mais disfuncional do que ele já é. Não se constrói um sistema fiscal justo e equilibrado com base no improviso e na urgência, mas sim com reflexão e debate técnico.

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