Apesar dos avanços normativos, o sistema de justiça brasileiro ainda reflete desigualdades estruturais de gênero e raça. Mulheres são maioria da população, predominam nos cursos de Direito e tem sucesso nos concursos públicos.
No entanto, seguem sub-representadas nas cúpulas das carreiras jurídicas, nos espaços de decisão política e em postos estratégicos da advocacia pública. Essa desigualdade compromete os princípios de representatividade e legitimidade democrática que devem nortear as instituições em um Estado constitucional.
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Nos tribunais superiores, os percentuais femininos permanecem baixos: apenas 1 das 11 cadeiras do Supremo Tribunal Federal (STF) é ocupada por uma mulher. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), são 5 entre 33 ministros. No Superior Tribunal Militar (STM), apenas uma mulher compõe a corte.
O padrão se repete nas demais carreiras do sistema de justiça. No Ministério Público, segundo seu Conselho Nacional (CNMP), apenas cerca de 12% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres. Na Advocacia-Geral da União (AGU), embora 47,5% do quadro funcional seja composto por mulheres, apenas 36,1% delas estão em cargos de alta liderança — e, dessas, cerca de 27% se autodeclaram negras.
Essa realidade revela que a ampla presença de mulheres na base do sistema de justiça, embora importante, não garante por si só transformações institucionais e representatividade feminina. E, neste sentido, o constitucionalismo feminista, especialmente em sua vertente transnacional, propõe uma abordagem crítica e transformadora do Direito, desafiando a ideia de que as normas jurídicas seriam neutras.
Autoras como Catharine MacKinnon (1989), Ruth Rubio-Marín (2022), Helen Irving (2008) e Vicki Jackson (2010) demonstram como os textos constitucionais e suas interpretações foram moldados a partir de perspectivas masculinas, resultando na marginalização histórica das mulheres no espaço público.
Sob essa lente, a igualdade formal – tratar igualmente os desiguais – é insuficiente. O foco deve ser a igualdade substantiva, que reconhece as desvantagens estruturais enfrentadas por mulheres, especialmente negras, indígenas e periféricas, e exige medidas concretas para superá-las. Isso inclui ações afirmativas, políticas de paridade, revisão da linguagem jurídica e formação permanente com perspectiva de gênero e interseccionalidade.
Rubio-Marín introduz o conceito de “constitucionalismo global de gênero”, que se baseia na convergência progressiva de princípios constitucionais voltados à cidadania plena das mulheres, transcendendo fronteiras nacionais. Para a autora, a participação feminina nas cortes não pode se limitar à presença simbólica: é necessário que as magistradas e demais agentes do sistema de justiça atuem como portadoras de uma agenda igualitária, que confronte padrões discriminatórios nas normas e na jurisprudência.
Helen Irving sustenta que o constitucionalismo deve incorporar, em seu desenho institucional, os impactos de gênero, de forma que a Constituição não apenas inclua as mulheres, mas reflita suas experiências, necessidades e vulnerabilidades. Ela argumenta que a exclusão de temas como trabalho de cuidado, violência doméstica e direitos reprodutivos do núcleo constitucional revela uma divisão androcêntrica entre público e privado, que precisa ser revista.
MacKinnon, por sua vez, denuncia o caráter performativo da neutralidade do Direito: ao afirmar-se como universal e imparcial, o Direito acaba por consolidar uma visão de mundo masculina como padrão. Sua crítica é radical, mas necessária, para compreender como o sistema jurídico pode legitimar desigualdades estruturais mesmo quando invoca a igualdade como princípio.
Nesse sentido, a criação de cotas na AGU, que passou a reservar 50% dos cargos comissionados para mulheres e 15% para mulheres negras é uma medida institucional corajosa e necessária. Soma-se a isso a adesão da AGU, em março de 2024, ao Selo de Igualdade de Gênero do PNUD, que estabelece 40 indicadores de equidade em instituições públicas. A iniciativa reforça o compromisso da advocacia pública com padrões internacionais de direitos humanos e sinaliza um esforço para institucionalizar práticas de igualdade.
O compromisso da AGU espelha uma agenda em curso em outras instituições. No Judiciário, o CNJ adotou a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina (Resolução 255/2018) e lançou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. No Ministério Público, o CNMP editou a Recomendação 79/2020, prevendo ações afirmativas e políticas de valorização do cuidado. E a OAB determinou a paridade de gênero nas eleições e indicações para o quinto constitucional, por meio do Provimento 202/2020.
Essas ações, embora ainda em estágio inicial de implementação, expressam um novo paradigma institucional: o reconhecimento de que a transformação da justiça depende da democratização de sua composição e do arejamento de seus pressupostos fundantes. Como lembra Rosemary Hunter, o chamado “julgamento feminista” não se limita à presença de magistradas, mas implica uma prática jurídica sensível às desigualdades estruturais, uma postura que também se aplica à advocacia pública, promotoria e defensoria.
O constitucionalismo feminista transnacional articula lutas locais e normativas globais. Inspirado em pactos como a CEDAW, a Convenção de Belém do Pará e a Plataforma de Ação de Pequim, ele propõe o engajamento crítico com decisões e padrões internacionais para redesenhar instituições e produzir interpretações constitucionais mais inclusivas. Jackson chama isso de “engajamento interpretativo transnacional”: a abertura reflexiva às experiências de outros países como caminho para ampliar a justiça interna.
A trajetória da AGU, nesse contexto, traz esperanças. A adoção de cotas, a adesão ao selo PNUD e a divulgação de diagnósticos institucionais transparentes revelam que é possível construir estratégias robustas de transformação institucional com base em evidências e compromissos normativos.
Mas os dados também demonstram que ainda há um longo caminho a percorrer: as mulheres seguem minoritárias nas instâncias superiores, e a presença de mulheres negras nos espaços de decisão é quase residual. Acrescente-se, ainda, os riscos de deliberado descumprimento dessas metas, cuja observância demanda constante mobilização político-jurídica.
Por isso, a igualdade de gênero no sistema de justiça não é mera demanda identitária: é um imperativo democrático. O Direito que se pretende neutro muitas vezes legitima hierarquias de poder historicamente excludentes. Para mudar isso, não basta abrir as portas: é preciso redesenhar as estruturas. O constitucionalismo feminista nos convoca a essa tarefa, e a advocacia pública, ao assumir esse compromisso, mostra que outra justiça é possível, uma justiça com rosto plural, linguagem inclusiva e vocação transformadora.
AGÊNCIA BRASIL. A Advocacia Geral da União adere ao Selo de Igualdade de Gênero do PNUD. Brasília, 8 mar. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/agu-e-tcu-aderem-ao-selo-de-igualdade-de-genero-nas-instituicoes-publicas. Acesso em: 05 jun. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Recomendação nº 79, de 24 de agosto de 2020. Dispõe sobre a equidade de gênero e raça no âmbito do Ministério Público. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br. Acesso em: 10 jun. 2025.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resolução nº 255, de 4 de setembro de 2018. Institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 10 jun. 2025.
CAMARGO, Fábio da Silva; GAETANI, Francisco; CABRAL, André Dantas . A diversidade na Advocacia‑Geral da União: percepções sobre a gestão da diversidade e o engajamento dos servidores. Publicações da Escola Superior da AGU, Brasília, v. 16, n. 2, out. 2024. Disponível em: https://revistaagu.agu.gov.br/index.php/EAGU/article/view/3534. Acesso em: 15 jun. 2025.
HUNTER, Rosemary. More than just a different face? Judicial diversity and decision-making. Current Legal Problems, London, v. 68, n. 1, p. 119–141, 2015.
IRVING, Helen. Gender and the Constitution: equity and agency in comparative constitutional design. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
JACKSON, Vicki C. Constitutional Engagement in a Transnational Era. Oxford: Oxford University Press, 2010.
MACKINNON, Catharine A. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989.
RUBIO-MARÍN, Ruth. Global Gender Constitutionalism and Women’s Citizenship: A Struggle for Transformative Inclusion. Cambridge: Cambridge University Press, 2022.