Nos últimos meses, a série Adolescência, da Netflix, se tornou um dos assuntos mais comentados dentro e fora das redes sociais. Diversas foram as recomendações elogiosas à obra que destacaram a necessidade de trazer o tema da série para o debate público. Se você ainda não assistiu e pretende, por favor pare a leitura: este texto contém spoilers. Sigamos.
Na série, acompanhamos o percurso do encarceramento de Jamie Miller, um menino britânico de 13 anos que, como revelado no início da trama, havia assassinado Katie Leonard, sua colega de sala. O crime praticado pelo adolescente foi motivado por uma dinâmica perigosa que combinava a vivência de bullying e o envolvimento na comunidade virtual incel, conhecida por seus discursos misóginos.
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A série certamente inova em apresentar a gravidade dos impactos que os discursos de ódio direcionado às meninas e mulheres nas redes sociais, pilar que une e sustenta a comunidade incel e redpill, têm para nossas crianças e adolescentes.
Contudo, a série não alcança o debate sobre a resposta punitiva que se direciona a um adolescente infrator na Inglaterra. Não há nenhuma menção crítica aos procedimentos custodiais pelos quais um adolescente é submetido naquele país.
Três momentos são reveladores nesse sentido. Vimos um adolescente e sua família tendo sua casa brutalmente invadida e revirada sob os olhares atentos e curiosos da comunidade, mesmo diante da não oferta de resistência à ação policial.
Acompanhamos, em plano sequência, um menino de 13 anos sendo obrigado a se despir para ser revistado por homens adultos, sob o olhar atento de uma profissional de saúde. Além disso, testemunhamos a perseguição a um adolescente da mesma idade, que tem início nos limites da escola e se desenvolve nas ruas ao redor.
Sem tirar o mérito da discussão necessária que a série promove, o silêncio sobre o tema da imposição de um modelo custodial extremamente repressivo contra adolescentes autores de ato infracional indica como esse debate também é urgente. A urgência desta discussão é ainda maior em países como o Brasil, onde persistem discursos em favor do recrudescimento infracional tanto para adultos quanto para adolescentes.
Na contramão das discussões levantadas pela série Adolescência, este texto problematiza a forma com que adolescentes são tratados pelo sistema de justiça juvenil brasileiro, sustentando a necessidade de combater a falácia da falta de responsabilização desses jovens.
A responsabilização de crianças e adolescentes no Brasil
Na Inglaterra, a responsabilização penal de adultos ocorre a partir dos 18 anos. Em casos de graves delitos, como homicídios e terrorismo, a responsabilidade penal cai para 10 anos de idade sendo que, caso condenado, o adolescente poderá ser privado de liberdade somente a partir dos 15 anos.
No Brasil, a Constituição Federal determina que menores de 18 anos são considerados inimputáveis. Isso significa que crianças e adolescentes que infringem a lei são julgados por legislação própria e, caso condenados, poderão ser responsabilizados por meio da aplicação de medidas socioeducativas. Ou seja, há no Brasil um procedimento judicial de responsabilização do adolescente autor de ato infracional. Ao contrário do que se propaga, essa resposta é dura.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diante do cometimento de um ato infracional, adolescentes de 12 a 18 anos poderão responder criminalmente. Caso seja comprovada a autoria e materialidade do ato, seis medidas socioeducativas podem ser aplicadas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e a internação.
As duas últimas medidas são de restrição e privação de liberdade e devem ser consideradas apenas em caráter excepcional e breve. Sob nenhuma hipótese o período máximo de internação poderá exceder a três anos.
A Doutrina da Proteção Integral estabelecida pela Constituição reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e assegura a elas proteção integral e prioridade absoluta. Essa doutrina está alinhada à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança da ONU, que também preconiza proteção, assistência e garantia de direitos especiais para crianças e adolescentes.
Segundo o ordenamento jurídico brasileiro, crianças e adolescentes, incluindo os infratores, deveriam ter primazia de atendimento nos serviços públicos e uma destinação privilegiada de recursos. De acordo com essas normas, os dois princípios básicos que fundamentam a aplicação das medidas socioeducativas são a compreensão das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e a proteção e o reconhecimento dessa fase da vida como um momento de aprendizado e desenvolvimento.
A realidade do sistema de justiça juvenil brasileiro
Em 2017, havia 117.207 adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas de prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida no Brasil. Atualmente, há 11.049 adolescentes e jovens em restrição e privação de liberdade, em 433 estabelecimentos espalhados pelo país.
Considerando que apenas 0,013% dos 21 milhões de adolescentes brasileiros cometeram atos contra a vida e que, portanto, os grandes responsáveis pelos índices de criminalidade com relação a crimes violentos são os adultos, o número de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa não é inexpressivo.
Além desses dados, é necessário compreender o que significa estar em privação de liberdade em uma unidade socioeducativa no Brasil. Ao contrário do que defende o ECA, esses espaços se assemelham muito mais a uma prisão do que a um estabelecimento educacional. Os chamados alojamentos são mais parecidos com celas do que com os quartos coletivos nos quais adolescentes deveriam coabitar. Os espaços e o acesso à educação também são precários, muito distantes dos moldes estabelecidos por lei.
Indo além, a pesquisa “Caminhos da Tortura na Justiça Juvenil Brasileira: O papel do Poder Judiciário”, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que cenas de maus tratos e tortura são muito mais comuns nesses estabelecimentos do que se imagina. Segundo o relatório, situações de agressão física e tortura psicológica, como humilhações e ameaças, são frequentes no cotidiano dos adolescentes privados de liberdade.
Problemas estruturais como a precariedade das instalações, e o uso de técnicas inadequadas para lidar com adolescentes com problemas de saúde mental, como a contenção química, também são uma realidade apontada pelo relatório.
A imperatividade de combater a falácia da falta de responsabilização juvenil no Brasil
Em contraposição ao número expressivo de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas no Brasil e a realidade vivida por eles, existe uma falácia amplamente difundida no país que sustenta que adolescentes infratores não são devidamente responsabilizados. Essa narrativa ressalta o desconhecimento de grande parte da população brasileira tanto da legislação nacional quanto, sobretudo, da realidade do sistema de justiça juvenil e das unidades de internação.
De forma geral, essa falácia contribui para uma postura apática em relação a essas realidades, de maneira que até mesmo aqueles que têm conhecimento sobre suas condições precárias, não se comovem, nem mesmo se importam. Ao mesmo tempo, essa falácia fomenta discursos e medidas que visam o aumento da responsabilização de adolescentes infratores e maiores punições para esses jovens.
Nesse sentido, desde a promulgação do ECA, em 1990, até os anos 2020, houve 82 iniciativas pela redução da maioridade penal e 97 propostas defendendo o aumento de tempo de internação de adolescentes infratores no Congresso Nacional.
Nas últimas décadas, posturas apáticas e respostas punitivistas foram progressivamente naturalizadas, inclusive por meio da constante exposição a cenas policialescas de violação de direitos humanos de crianças e adolescentes, como ilustrado pela série “Adolescência”. Por isso, não nos escandalizamos ao assistir o arrombamento e o encarceramento de um garoto de 13 anos.
Tampouco achamos absurdo que um dos seus colegas seja submetido a um interrogatório informal nas dependências da escola e, na sequência, perseguido pela polícia. Ao final da série, chegamos a reproduzir discursos punitivistas e de recrudescimento infracional, defendendo a importância de mater esses jovens afastados da sociedade.
Ao contrário do que leva a crer o senso comum, essas posturas e respostas contribuem diretamente para o agravamento da violência juvenil no Brasil. A realidade do sistema de justiça juvenil impõe obstáculos significativos ao retorno desses jovens à liberdade com condições adequadas de conviver em sociedade, perpetuando as chances de cometerem novas infrações. O aumento do recrudescimento infracional produz condições ainda menos adequadas, agravando cada vez mais a violência juvenil no país.
Além de gerar efeitos opostos aos pretendidos pela população, essas posturas e respostas também obstaculizam debates em relação às causas da violência juvenil e à adequada responsabilização de crianças e adolescentes. Dessa forma, essas perspectivas contribuem ainda mais para o agravamento da situação.
Em razão da progressiva naturalização dessas perspectivas e do agravamento da situação, faz-se urgente discutir a violência juvenil e a responsabilização de crianças e adolescentes.
Para que esses debates possam, de fato, ocorrer no Brasil, é necessário, antes de tudo, que confrontemos as perspectivas que, além de ineficazes, os limitam — o que reforça a imperatividade de combater a falácia da falta de responsabilização juvenil.
A partir desse enfrentamento, será possível desenvolver a compreensão das causas da violência juvenil no país e buscar meios efetivos e adequados de enfrentá-la. Somente então a realidade atual começará a ser superada. Somente então será possível começar a superar a realidade atual.