Recente decisão do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), no âmbito do Procedimento Administrativo para Apuração de Ato de Concentração (APAC) 08700.000641/2023-83,[1] gerou grande discussão na comunidade antitruste quanto às possíveis implicações na interpretação da Resolução Cade 33/2022, especificamente no que se refere à definição de grupo econômico para fins de cálculo de faturamento e consequente deliberação sobre a obrigatoriedade, ou não, de notificação prévia de operações à aprovação do Cade.
Nesse processo, as empresas foram investigadas pela suposta prática de gun jumping, associada à aquisição de participação societária concluída em 28.10.2021 e notificada ao Cade em 27.2.2023.
Em sua decisão sobre o APAC, proferida no dia 20.3.2024, o Tribunal do Cade decidiu por reconhecer a ocorrência de gun jumping, mas afastar a aplicação de multa, tendo em vista a alegada controvérsia jurisprudencial, conforme detalhado abaixo.
Nesse sentido, o voto proferido pelo conselheiro relator, Victor Oliveira Fernandes (Voto do Relator), buscou sistematizar a prática decisória do Cade em relação ao que configura grupo econômico para fins de cálculo de faturamento,[2] e ao conceito de “controle comum, interno ou externo” disposto no inciso I do parágrafo 1º do artigo 4º da Resolução Cade 33/2022.
Objeto e alcance da decisão em comento
a. O passo a passo para definição de grupo partindo das partes diretamente envolvidas na operação
Questão central endereçada no Voto do Relator foi: em operações em que a parte diretamente envolvida é uma empresa, e essa empresa tem acionista/quotista minoritário com 20% ou mais do seu capital total ou votante, deve essa empresa ser considerada automaticamente parte do grupo econômico desse acionista (que pode ser outra empresa ou um fundo de investimento), independentemente de qualquer consideração sobre controle?
Para responder a essa pergunta, o Voto do Relator interpretou as regras do art. 4º, §§ 1º e 2º, da Resolução Cade 33/2022[3].
Entendendo de forma diversa da Superintendência-Geral do Cade (SG), o Voto do Relator definiu que o primeiro passo na interpretação do referido artigo é identificar “as partes diretamente envolvidas na operação”. Caso elas sejam empresas, deve-se aplicar a regra do § 1º, que estabelece critérios cumulativos para a compreensão do grupo econômico (controle comum e participação – pelas empresas sob controle comum – de ao menos 20% do capital total ou votante de outras empresas).
Por sua vez, se as partes diretamente envolvidas são fundos de investimento, a regra diretamente aplicável é a do § 2°, cuja redação é relevantemente diferente, ao dispor que serão consideradas parte do grupo, para baixo, as empresas controladas pelo fundo e as empresas das quais o referido fundo detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 20% do capital social ou votante. Ou seja, se o fundo detiver mais de 20% da empresa, ela será considerada parte do grupo econômico do fundo a despeito de qualquer análise de controle.
No caso em questão, as entidades diretamente envolvidas no negócio jurídico eram empresas, portanto aplicáveis as regras do § 1º sendo imprescindível identificar as empresas sob controle comum – unitário ou compartilhado – sobre as empresas parte da operação para definir os grupos econômicos para fins de cálculo de faturamento. O segundo passos seria verificar as empresas nas quais as empresas sob controle comum teriam mais do que 20% do capital total ou votante.
No caso em concreto, o Voto do Relator entendeu que havia controle compartilhado sobre as partes, exercido pelos seus fundos acionistas, de forma que cada uma das empresas pertencia ao grupo econômico dos fundos de investimentos que as controlavam, respectivamente. Portanto, restou configurada a prática ilícita de gun jumping. Porém, não foi aplicada multa às partes, segundo o Voto do Relator, em razão da alegada controvérsia jurisprudencial sobre a interpretação de grupo econômico e a aplicabilidade da verificação de “controle” na definição de grupo.[4]
b. Controle compartilhado – os direitos que o configuram versus os direitos de mera proteção do investimento
Com relação à definição do que seria considerado controle compartilhado, o Voto do Relator indicou que há de se analisar os direitos especiais atribuídos aos acionistas minoritários levando em conta os instrumentos contratuais, como o acordo de acionistas e o estatuto social.
Deve-se verificar, à luz das disposições da Lei das S.A., se os direitos previstos nos documentos mencionados se configuram como direitos de mera proteção ao investimento ou direitos de minoritários que geram presunções de controle compartilhado. O Voto do Relator procurou afastar o exame do exercício em concreto do poder de controle nos órgãos deliberativos a noção de “influência relevante” como noção abstrata não necessariamente pautada das disposições contratuais.
Entre os exemplos citados pelo Voto do Relator como direitos de minoritários que gerariam, em tese, presunções de controle compartilhado estão: (i) direitos de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação de matérias como: aprovação de plano de negócios, de orçamento anual, eleição e destituição de diretores, aprovação de política de negócios, de qualquer alteração no estatuto que afetem direitos de acionistas, (ii) direito de indicar membros para o Conselho de Administração, especificamente quando combinado com direitos de veto sobre matérias concorrencialmente estratégicas e (iii) direito de veto sobre decisões que envolvem temas de investimentos, empréstimos, contratações e outras operações acima de determinados valores, aprovação de relatórios gerenciais, demonstrações financeiras e a indicação de auditores independentes.
Por sua vez, entre os direitos dos acionistas minoritários que seriam considerados como mera proteção ao investimento, afastando-se, em tese, a hipótese de controle compartilhado foram citados, a título de exemplo: (i) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação em Assembleia Geral de matérias como: operações societárias relevantes, emissão de títulos da sociedade a terceiros, aprovação de dividendos ou outras formas de distribuição de lucros, entre outros, (ii) direito de veto ou necessidade de quórum qualificado para aprovação em Conselho da Administração de matérias como: eleição e destituição de membros do comitê de auditoria, eleição e destituição do diretor presidente ou do presidente do Conselho de Administração e aprovação do plano geral de negócios propostos pela Diretoria, desde que, em caso de impasse, a matéria seja submetida à deliberação do Conselho de Administração e aprovada por maioria simples, (iii) direito de indicar membros para o Conselho de Administração, desde que não combinado com direitos de veto sobre matérias estratégicas, (iv) direito de veto sobre contratos entre a companhia e o acionista controlador ou outras sociedades nas quais o acionista controlador tenha interesse e, por fim, (v) direito de veto sobre a avaliação de bens destinados à integralização de aumento de capital.
Impactos práticos para casos concretos
Embora as regras não tenham mudado desde a edição da Resolução Cade 33/2022, o Voto do Relator indicou a interpretação que deverá ser dada a esse normativo para casos futuros envolvendo aquisições de participações acionárias e questões relacionadas à interpretação do que seria controle.
Em evento da ICC Brasil realizado no último dia 6 de maio, o conselheiro Victor Fernandes reafirmou que o objetivo de seu voto foi o de sistematizar a jurisprudência do Cade e não o de trazer uma nova orientação sobre o assunto. Para ele, o Cade já havia demonstrado em sua jurisprudência que, deter menos de 20% de participação societária, mas ter um ou mais dos direitos de controle sistematizados no voto, seria suficiente para configurar controle e constituir grupo econômico para fins concorrenciais.
Nesse sentido, em operações cujas partes diretamente envolvidas são empresas (e não fundos de investimento), deve-se redobrar a atenção na análise de cadeias societárias em sua totalidade, de forma que deve ser entendida como relativa a presunção de que a mera detenção de 20% de participação societária no capital total ou votante configura grupo econômico.
Caso na cadeia societária haja, também, fundos de investimento, eles serão considerados partes do grupo econômico da empresa na hipótese de haver “controle comum interno ou externo” (§1°, inciso I), ou seja, o fundo de investimento deve, de alguma forma, exercer controle sobre a parte diretamente envolvida na operação.
Uma vez identificado o controle pelo fundo, deverão ser aplicadas as regras de fundos de investimento (§2º) sobre o fundo na cadeia, de modo a definir o grupo econômico. Em operações cujas partes diretamente envolvidas são fundos de investimento (e não empresas), a análise continuará sendo mais objetiva (§ 2º), configurando grupo econômico o grupo do cotista que detém ao menos 50% do fundo e as empresas investidas do fundo em ao menos 20%, independentemente de controle pelo fundo.[5]
Conclusões
Nas palavras do próprio conselheiro, a decisão traduziu uma sistematização de casos similares já julgados pelo Cade, nos quais houve discussão sobre o conceito de grupo econômico para fins de cálculo de faturamento.
O Voto do Relator procurou estabelecer diretrizes mais claras sobre a leitura do artigo 4º da Resolução Cade 33/2022 para frisar a necessidade de se aferir, em um primeiro filtro, a existência de controle nos casos em que a parte diretamente envolvida na operação é uma empresa.
Com base nessa decisão, a mera detenção de 20% de ações/quotas não seria suficiente para configurar um grupo econômico, o que enfatiza a importância de examinar os direitos associados a essas participações, distinguindo entre ações que geram presunção de controle e aquelas voltadas apenas para a proteção do investimento. Além disso, ressaltou-se a importância de se considerar o controle, mesmo que compartilhado, na determinação do grupo econômico, algo que já consta da Resolução 33/2022, mas que, muitas vezes, restava presumido no critério dos 20% de participação.
É fundamental, portanto, acompanhar de perto os próximos casos e o desenvolvimento deste tema dinâmico, já que algumas dúvidas permanecem, como o que seriam “partes diretamente envolvidas na operação”, e um entendimento mais objetivo de “poderes de controle”. Por fim, resta uma inquietação sobre a substituição da objetividade do conceito de “20%” pela fluidez/subjetividade do conceito de “controle”.
[1] Representante: Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ex officio. Representadas: Digesto Pesquisa e Banco de Dados S.A. (Digesto) e Goshme Soluções Para a Internet Ltda. (Jusbrasil).
[2] É importante ressaltar que a discussão deste artigo, bem como o alcance da decisão comentada, nos próprios termos do artigo 4 da Resolução Cade 33/2022, estão centrados no conceito de grupo para fins de cálculo de faturamento. Não abordaremos, no artigo, a definição de grupo econômico para fins de análise de mercado, conforme estabelecido no item II.5.2 dos Anexos I e II da Resolução Cade 33/2022, os quais são objeto de disciplina própria.
[3] Art. 4º Entende-se como partes da operação as entidades diretamente envolvidas no negócio jurídico sendo notificado e os respectivos grupos econômicos.
1º Considera-se grupo econômico, para fins de cálculo dos faturamentos constantes do art. 88 da Lei 12.529/2011, cumulativamente:
I – As empresas que estejam sob controle comum, interno ou externo; e
II – As empresas nas quais qualquer das empresas do inciso I seja titular, direta ou indiretamente, de pelo menos 20% (vinte por cento) do capital social ou votante.
2º No caso dos fundos de investimento, são considerados integrantes do mesmo grupo econômico para fins de cálculo do faturamento de que trata este artigo, cumulativamente:
I – O grupo econômico de cada cotista que detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 50% das cotas do fundo envolvido na operação via participação individual ou por meio de qualquer tipo de acordo de cotistas; e
II – As empresas controladas pelo fundo envolvido na operação e as empresas nas quais o referido fundo detenha direta ou indiretamente participação igual ou superior a 20% (vinte por cento) do capital social ou votante.
[4] Segundo o Conselheiro Relator Victor Fernandes, neste caso, era inconteste que a operação de aquisição da totalidade das ações da Digesto pela Jusbrasil foi consumada sem prévia notificação ao Cade, ensejando, portanto, a prática de gun jumping. Entretanto, o Relator argumentou que os precedentes conflitantes evidenciam que o tema ainda é controverso na jurisprudência antitruste. Segundo Victor Fernandes, no presente caso, as Representadas tinham motivos razoáveis para acreditar que a operação não se subsumia aos requisitos de notificação obrigatória previstos no artigo 88° da Lei 12.529/2011. Assim, o Voto do Relator argumentou que, por se tratar de situação excepcional posta no caso em tela, seria de rigor a incidência no caso concreto do comando do artigo 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), o qual prevê que não se pode aplicar de imediato, e muito menos retroativamente, “decisão administrativa, controladora ou judicial que estabelecer interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado, impondo novo dever ou novo condicionamento de direito”. Em face do exposto, não se aplicou multa às empresas Digesto e Jusbrasil pela prática de gun jumping.
[5] Note-se que a simples interposição de empresa holding como parte direta da operação não deve afastar a aplicação da regra para grupo de fundos de investimento (§2º), caso essa holding seja controlada por fundo de investimento, já que este último, como controlador, atrairia a aplicação do §2º e o grupo do fundo seria incluído na análise normalmente.