PL 2925 e a reforma do enforcement societário às custas do patrimonialismo

As experiências de Fernando Haddad na administração pública como ministro da Educação (2005-2012) e prefeito de São Paulo (2013-2016) inspiraram o conhecido ensaio “Vivi na pele o que aprendi nos livros”, publicado na revista Piauí em junho de 2017.

Haddad retomou o conceito de patrimonialismo que aprendeu com Raymundo Faoro (Os Donos do Poder) para refletir sobre os desafios que enfrentou. Contou que viveu o patrimonialismo na pele. Viu de perto como “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal”. Ilustrou com exemplos que demonstram a captura do Estado pela simbiose nefasta entre poder político e poder econômico.

Às vésperas de disputar o Governo de São Paulo, em 2022, Haddad lançou O Terceiro Excluído, livro em que abordou novamente o patrimonialismo, desta vez para definir o Estado brasileiro assim: “em vez da objetividade abstrata de um direito igual, típica do Estado moderno, o Estado patrimonial é regido pelo princípio oposto, o das considerações eminentemente pessoais”.

Derrotado na eleição paulista, Haddad retornou à administração pública como ministro da Fazenda do governo Lula e prometeu “fechar os ralos do patrimonialismo brasileiro”.

O ministro assim tem feito, por um lado, pelas medidas tributárias com foco em pôr fim às regras especiais e desonerações que privilegiam grupos organizados. Por outro lado, o PL 2925/2023, recém-enviado ao Congresso, mira o patrimonialismo – só que não o do Estado, e sim o patrimonialismo que toma forma nas relações privadas. 

O PL 2925 altera dispositivos da Lei 6.404/1976 que dispõe sobre as sociedades anônimas, formadas pela associação de milhares de acionistas, dentre os quais o acionista controlador e os minoritários.

Se o patrimonialismo nas relações públicas vem dos privilégios que membros da elite obtêm nos gabinetes dos políticos em detrimento da população, numa sociedade anônima equivale ao favorecimento pessoal do acionista controlador às custas dos demais acionistas. É o caso da companhia levada a atender os interesses do acionista controlador, e não o interesse social, como quer a lei.

O princípio básico de uma sociedade anônima é de que o interesse social é irredutível ao interesse individual de qualquer dos seus acionistas. O acionista controlador deve usar o seu poder e ao mesmo tempo ter em conta o interesse dos demais acionistas. O mesmo a ser dito dos administradores que acabam sendo braços do controlador em companhias com controle definido.

Para limitar os benefícios particulares que o controlador pode auferir, a lei societária atribui deveres específicos ao controlador e administradores, bem como responsabilidade pelos atos praticados com abuso de poder. Há um dever legal de observar determinada conduta; o ato que viola tal conduta é ilícito; e o ato ilícito gera o dever de reparar os danos causados.

Só que o sistema, para funcionar, depende de normas de natureza processual destinadas a garantir o enforcement efetivo desses direitos e obrigações. É por isso que a lei societária confere legitimidade extraordinária para os acionistas minoritários exercerem a tutela do patrimônio social da companhia: desde que representem ao menos 5% do capital social, minoritários podem demandar em nome da companhia por meio das ações de responsabilidade contra controladores (art. 246) ou administradores (art. 159).

Mas o que se vê é que ações do tipo são raras. Existem poucos exemplos de controladores ou administradores condenados por essas vias. Diante desse fato, Paulo Cezar Aragão comenta que “ou sempre fomos um país com padrões escandinavos de governança corporativa, ou quase ninguém vai ao Poder Judiciário para discutir questões relativas a companhias ou ao mercado de valores mobiliários”. 

A resposta está no estudo realizado pela OCDE, em parceria com o Ministério da Fazenda e a CVM, que comparou o sistema brasileiro com congênere estrangeiros e concluiu que tais ações não são efetivamente empregadas como mecanismos de reparação por conta de obstáculos legais à sua propositura.

A virtude do PL 2925 está em voltar os olhos para os obstáculos com o fim de propor uma reforma do sistema de enforcement da Lei das S.A.

Veja-se que, nas ações de responsabilidade, o acionista minoritário age em nome próprio e por isso suporta os encargos financeiros do processo, inclusive os honorários sucumbenciais. Mas como defende um direito da companhia lesada, é para ela que vão os resultados de eventual condenação de controladores ou administradores, enquanto o minoritário que propôs a ação é apenas indiretamente beneficiado pela recomposição do patrimônio da companhia.

Assim que tais ações dependem do balanceamento entre incentivos e desincentivos para que os acionistas sejam levados a demandá-las. Se os custos processuais e a exigência de que representem pelo menos 5% do capital social previnem ações aventureiras, a atribuição de um prêmio para o acionista minoritário, calculado sobre a condenação, em caso de procedência da ação, serve de incentivo.

Só que a lei societária prevê um prêmio de apenas 5% (e reembolso das custas) em caso de procedência da ação contra os controladores (art. 246, §2º). Na ação contra os administradores, ainda pior, assegura tão só o reembolso das custas (art. 159, §5º). O estudo da OCDE demonstrou como esses prêmios são desproporcionais em relação às legislações estrangeiras, sujeitando o acionista minoritário a elevados riscos para defender o patrimônio da companhia.

Outras dificuldades ainda se impõem, como a exoneração excessivamente ampla conferida aos administradores pela aprovação das contas (art. 134, §3º). Caso constatada qualquer irregularidade, torna-se necessário uma ação anulatória da deliberação que aprovou as contas para, só em seguida, ingressar com a ação de responsabilidade. A duração desse processo, no mais das vezes, fulmina o direito pelo correr do prazo prescricional da ação de responsabilidade (art. 287, II, b, 2).

Assim, nas palavras de Tavares Guerreiro, “apesar de a Lei 6.404 ter adiantado de forma progressista a responsabilidade do acionista controlador por atos praticados com abuso de poder, o esquema sancionatório desses atos é ainda insuficiente”.

O PL 2925 propõe alterações nas ações de responsabilidade contra controladores e administradores, resumidas em dois pontos: (i) flexibilização do critério de legitimidade pela qual as ações poderão ser propostas por acionistas que representam 2,5% (ou R$ 50 milhões) do capital social das companhias abertas; e (ii) aumento do prêmio para 20% do valor da condenação (do qual serão descontados os honorários sucumbenciais) conferido ao acionista minoritário que promover qualquer das ações, inclusive a dos administradores.

Também extingue a exoneração automática dos administradores em caso de aprovação das contas pela assembleia, cabendo exonerá-los apenas por deliberação específica que indique os fatos cobertos.

E, ainda, introduz uma nova espécie de ação civil coletiva na Lei 6.385/1976 (a Lei do Mercado de Capitais, irmã da Lei das S.A.), a ser proposta pelos próprios acionistas minoritários contra controladores e administradores por danos decorrentes de infração às normas do mercado de capitais, assim indo além das ações civis coletivas previstas nas Leis 7.913/1989 e 7.347/1985 que conferem legitimidade apenas às associações, o Ministério Público ou a CVM.

Alterações na legislação societária e do mercado de capitais sempre geram apreensões porque ameaçam o sistema de freios e contrapesos equilibrado pelo legislador (e que, na grande parte dos casos, funciona bem até hoje). Mas é bom lembrar que as alterações foram diretamente inspiradas pelas conclusões do estudo da OCDE, em parceria com o Ministério da Fazenda e a CVM, iniciado lá em 2016. 

Assim se vê que o projeto passou pelas mãos de muita gente ao longo dos governos Temer, Bolsonaro e agora Lula. É um projeto de Estado e não de governo. Mas não deixa de ser paradigmático que tenha sido finalizado e assinado pelo ministro Haddad, para quem o patrimonialismo é um dos entraves ao desenvolvimento do país, seja no âmbito público ou privado.

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