Ainda que tenha sido adiada a votação do PL das Fake News (PL 2630/2020) na Câmara dos Deputados, o debate público em torno da proposta legislativa ainda agita os bastidores da política e da sociedade. Existem diversos pontos a serem analisados e sobre os quais pretendo fazer breves reflexões. Neste primeiro momento, optei por avaliar o § 8º, do art. 22 do projeto.
Veja-se a redação do dispositivo:
Art. 22 São consideradas de interesse público, submetendo-se aos princípios da Administração Pública, as contas de redes sociais indicadas como institucionais pelas entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, e pelos seguintes agentes políticos e servidores públicos:
8º A imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de aplicação de redes sociais.
A proposta normativa busca evitar que as palavras e as opiniões dos senadores, dos deputados e dos vereadores sejam objeto de responsabilização civil ou criminal, nos termos do art. 53, caput, e do inc. VIII, do art. 29, ambos da Constituição Federal de 1988.
Alguns setores da sociedade têm visto com preocupação essa proposta, sob o argumento de que os parlamentares federais, estaduais e municipais passariam a ser “supercidadãos” em comparação aos demais integrantes da sociedade, assim como poderiam ter a seu favor uma licença para propagar fake news (cujo conceito até o momento não se consegue precisar com a fineza adequada para fins de responsabilização). Com todo respeito, esse ar de preocupação não se sustenta, sob os aspectos jurídico e lógico. Senão veja-se.
A imunidade parlamentar material não se trata de um privilégio ou de uma benesse concedida aos parlamentares. Na realidade, configura-se como instrumento necessário ao sistema democrático representativo, haja vista que os parlamentares são eleitos pelo titular do poder (o povo) a partir de sua visão de mundo que divulgam e propagam nos momentos eleitorais.
Quer-se dizer: o voto confiado aos parlamentares pela população acontece a partir de uma identificação de ideias e de pautas que serão defendidas e debatidas em uma das Casas Legislativas por aqueles que foram eleitos. Por essa razão, os eleitos, no exercício do mandato, devem possuir ampla e irrestrita liberdade para expressar tais ideias que os levaram à investidura no cargo de parlamentar.
Veja-se, então, que, por uma questão lógica e axiológica, os parlamentares se encontram numa situação de superposição para disseminarem suas falas, opiniões e palavras, sem qualquer receio de represália civil e criminal. Embora, infelizmente, a imunidade parlamentar material venha sendo objeto de fragilização de interpretações jurídicas controversas no Brasil que a enfraquecem a cada dia, certo é que ainda se trata de pressuposto essencial para a manutenção de um verdadeiro sistema político que se deseja democrático.
Assim, o argumento de que a proposta normativa colocaria os parlamentares numa superposição não possui qualquer coerência lógica e nem mesmo fundamento jurídico razoável. Em verdade, a sua previsão seria até mesmo desnecessária, diante das expressas previsões constitucionais do art. 53, caput, e do inc. VIII, do art. 29, ambos da Constituição Federal.
Nada obstante isso, pelos movimentos recentes de retirada do ar de contas de parlamentares por decisões judiciais, a inclusão dessa previsão vem em boa hora para dar maior segurança jurídica e reforçar a imunidade parlamentar material em tempos modernos e tecnológicos, nos quais a internet passa a ser um importante canal de disseminação de práticas governamentais e de posicionamentos parlamentares contra ou a favor de medidas adotadas pelos governos de situação.
Nessa linha, é importante esclarecer o óbvio: as mídias sociais e as entrevistas realizadas em canais da internet são apenas meios de os parlamentares divulgarem suas ideias. Trata-se de uma alteração de paradigma de veiculação de opiniões, que, no entanto, é semelhante a uma entrevista ocorrida em televisão, rádio e jornal. Essa obviedade, infelizmente, não tem sido levada em conta nos debates públicos e em casos específicos apreciados pelo Poder Judiciário.
Ter em mente que a internet é apenas um meio rápido, célere e atual de divulgação de ideias reforça logicamente que é irreal o argumento de que, com o § 8º, do art. 22, do PL das Fake News, os parlamentares terão a seu favor o escudo de disseminarem fake news.
Pois o que se busca com a proposta normativa é apenas salientar que os parlamentares não poderão ter seus perfis em mídias sociais bloqueados ou suas postagens excluídas ou suspensas por externarem suas opiniões. O fato de isso não ser possível de acontecer não retira o sempre viável caminho de se buscar uma responsabilização de parlamentares, que pratiquem ilegalidade, junto à Comissão de Ética das respectivas Casas Legislativas.
Infelizmente, ainda não se tem uma cultura no Brasil de que o caminho para a punição de parlamentares, por suas palavras e opiniões, deve ser feito na seara correta, que é o próprio Poder Legislativo, através de sua Comissão de Ética, por violação ao decoro parlamentar ou qualquer outra infração específica que possa ser prevista em torno de disseminação de fake news.
Não enxergar a necessidade de caminhar por essa linha tem levado a horizontes tortuosos e perigosos de enfraquecimento da imunidade parlamentar no Brasil através de interpretações jurídicas controversas e que, por vezes, afrontam aquilo que deveria ser o limite de qualquer hermenêutica jurídica: a redação do texto legal/constitucional e seu sentido literal.
Adotar um caminho de que aos parlamentares não teria assegurada a imunidade parlamentar por proferirem suas opiniões, palavras e ideias em mídias sociais seria o mesmo que enfraquecer o sistema democrático e hipertrofiar os órgãos de persecução e de responsabilização civil e penal brasileiros, desestabilizando a ideia em torno de termos Poderes republicanos harmônicos e independentes entre si, nos termos do art. 2º da Constituição.
Por todos esses motivos, tem-se que a previsão da proposta do § 8º, do art. 22, do PL das Fake News é um avanço para assegurar a segurança jurídica e retomar o status quo de que a imunidade parlamentar é um pressuposto para a manutenção e o fortalecimento do sistema político que verdadeiramente se deseja democrático, sem prejuízo de ser possível – se for o caso – a responsabilização de parlamentares nas respectivas Comissões de Ética por infração a qualquer atividade atentatória ao decoro parlamentar na divulgação de fake news.