Desde a década de 1930, com o fim da Era Lochner, e com a reconstrução promovida pelas políticas do então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, após a crise de 1929, começou-se a ver, no mundo ocidental, uma atuação cada vez mais incisiva das instituições estatais no domínio econômico. Sem querer entrar na ponderação dos riscos de falhas de governo que a migração desse modelo institucional pode comportar, e colocando-se em suspenso avaliações sobre a possibilidade de modelos alternativos terem chegado ao resultado buscado mais eficientemente, é perceptível que essa matriz perdura até o presente momento.
À época, os desafios eram outros. No cenário norte-americano, no âmbito daquilo que tradicionalmente passara a integrar o domínio do “direito regulatório”, o principal desafio estava no setor energético. Mais especificamente, objetivava-se ampliar a eletrificação do país, especialmente fora dos rincões que foram beneficiados pela industrialização. Os habitantes dessas regiões, normalmente localizadas fora do “Cinturão de Aço”, ainda viviam como seus avós em meados do século 19[1]. Foram ações como a eletrificação do Vale do Rio Tennessee que ajudaram a diminuir esse gap em estados como Alabama, Mississippi, Kentucky, Geórgia e Tennessee, dentre outros[2].
Os anos passaram e, mesmo com os percalços da 2ª Grande Guerra, já na década de 1950, os EUA já atingiam um nível de acesso notável à eletricidade, com um nível de conforto sem precedentes em sua história. Já não era mais necessário buscar e carregar lenha para gerar calor e fogo para que as pessoas pudessem cozinhar, aquecer-se e obter iluminação. Também não era necessário gastar boa parte do tempo para que as roupas fossem lavadas e nem era necessário se preocupar em conservar alimentos com técnicas como fermentação, salga ou defumação, quando isso era possível. Essa ampliação da rede, da capacidade de geração e do mercado consumidor gerou um feedback loop positivo no sentido de permitir que essa ampliação da oferta de eletricidade ao consumidor alimentasse a demanda doméstica de vários produtos que dela dependem para funcionar (geladeiras, máquinas de lavar, fogões elétricos etc.). Isso proporcionou, no agregado, economias de escala e de escopo, viabilizando um salto na qualidade de vida dos consumidores inédita na história registrada da humanidade.
No entanto, com todo esse progresso tecnológico que já faz parte do quotidiano da humanidade mesmo em economias em desenvolvimento, há uma complexidade informacional subjacente de difícil compreensão pelo consumidor mediano. E essa complexidade, a seu turno, acaba integrando as rotinas e os fluxos das agências governamentais que precisam formular políticas públicas de universalização de serviços e regulamentar a atuação dos players privados que atuam no desenvolvimento de aplicações e soluções que estejam compreendidos nas cestas de tais políticas.
Paralelamente a isso, deve ser acrescentado que a atuação regulatória governamental não se limitou ao setor elétrico. Com o passar do tempo, novas áreas foram sendo incorporadas aos domínios de tal atividade, a exemplo do que ocorreu com o uso do espectro de radiofrequência (tema este que ganhou um contorno singular após a publicação do artigo seminal de Ronald Coase em 1959[3] sobre a Federal Communications Commission, recebido inicialmente com certa oposição pela comunidade acadêmica) como um recurso escasso e que, portanto, deveria ser objeto de alocação de direitos de propriedade. Ainda como exemplo, também cite-se o mercado de aviação civil (desde os slots nos terminais aeroportuários até as rotas exploradas). Além disso, temas como meio ambiente, abastecimento de água e serviços de esgotamento sanitário, planos de saúde e transportes também entraram dentro dessa agenda.
Por sua vez, os consumidores, enquanto trabalhadores, tiveram de se especializar em nichos de informação cada vez mais específicos e fragmentários para o exercício de suas atividades. No entanto, adquirir informação tem um custo de oportunidade e, assim, o tempo dedicado para se obter mais informação para a execução do próprio trabalho implica menos informação adquirida em relação a outros tipos de conhecimento e em relação a outras atividades, inclusive conhecimentos sobre os aspectos dos serviços públicos consumidos. Numa síntese: é racional pressupor que as pessoas não adquirirão informações sobre os aviões em que voarão e nem sobre como é transmitida sua voz ao interlocutor em uma chamada. Simplesmente não há tempo para isso, pois a racionalidade dos agentes econômicos como um todo é limitada por definição.
Essa circunstância se agrava quando se leva em consideração o impacto que o ritmo acelerado da vida contemporânea tem sobre os regimes de memória e esquecimento, como observa a filósofa e professora titular de Teoria da Comunicação da UFF, Maria Cristina Ferraz, em sua obra Homo deletabilis: corpo, percepção, esquecimento: do século XIX ao XXI (2010). A pressa, como resultado da pressão por eficiência e produtividade que marcam as relações de trabalho, é fator central no aniquilamento do saber.
Assim, percebe-se um constante aumento do nível de assimetria de informação entre o cidadão/consumidor e as instituições estatais que regulam serviços públicos. A partir da leitura que ora se faz, essa assimetria decorre de uma série de fatores, tais como: ausência de tempo disponível, o esquecimento, aumento da cesta de serviços estatais que são marcados por um ambiente tecnicamente complexo, aumento do estoque informacional mínimo necessário para o domínio técnico da atividade regulada em decorrência do surgimento de novas tecnologias etc.
Nesse contexto, é razoável supor que haja uma desconfiança natural entre o cidadão e o regulador. Tal cenário também é alimentado pelo risco de falhas de governança, a exemplo do que ocorre com o risco de captura do agente regulado.
Para mitigar o risco de falhas dessa governança, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) recomenda, em diversos de seus manuais de boas práticas regulatórias, a adoção de posturas de governança transparentes, com clareza nos processos de enforcement e de inspeção – as quais devem se pautar em regras claras e definidas, tanto de competência como de condutas a serem seguidas pelo agente regulado. Também é sugerida a utilização de checklists, de modo que a carga regulatória não se torne um empecilho para novos entrantes nos mercados regulados, os quais normalmente são os que têm maior dificuldade de conformação às normas setoriais[4].
Não seria exagero dizer que essas práticas se encontram alinhadas com o Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 16.7 e 16.10 da Organização das Nações Unidas (ONU)[5], que preconizam, dentre outros, o desenvolvimento de instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis e o acesso público à informação.
Também se percebe que existe um alinhamento entre essas recomendações e a forma pela qual o Brasil, por meio da Controladoria-Geral da União (CGU), vem conduzindo sua política de transparência, o que pode ser depreendido, a título de exemplo, dos recentes Enunciados 11/2023 e 12/2023 da CGU[6], os quais trazem um aprimoramento no tema. O primeiro atribui ao gestor público o ônus de demonstrar efetivo prejuízo concreto ou inviabilidade técnica para o indeferimento de pedidos de acesso formulados com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), não sendo suficientes meras ilações em abstrato. O segundo preconiza que a garantia do acesso à informação deve ser compatibilizada com a proteção de dados pessoais, não se constituindo esta última, a princípio, em fundamento idôneo para a negativa de pedidos de acesso, pois há técnicas de tratamento (como hachuras, tarjas, descaracterizações etc.) que mitigam os riscos de exposição da privacidade individual.
Em decorrência da racionalidade limitada dos agentes econômicos, pressupõe-se uma natural e crescente assimetria de informação entre o cidadão/consumidor e o regulador. Eventuais dificuldades que o consumidor tenha de avaliar meritoriamente as decisões das agências reguladoras devem ser compensadas pela transparência no processo respectivo. Essa transparência visa mitigar os riscos de questionamentos sobre a integridade dos membros do corpo técnico do regulador e, assim, preservar a legitimidade social das regulações que emite.
Desde o advento das primeiras normas sobre serviços regulados, ainda na década de 1990, até a atualidade, pode ser percebido que, paulatinamente, as agências reguladoras tiveram um incremento de sua transparência decisória. No início, considerada, exemplificativamente, a Lei 9.472, de 16 de julho de 1997 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), já era possível encontrar disposições que evidenciavam algum nível de transparência a ser cumprida pelas agências reguladoras, a exemplo da publicidade das atas do Conselho Diretor da Anatel (art. 21) e as consultas públicas para os planos de metas de universalização, de outorgas (art. 19, inc. III) e a publicidade de minutas de atos normativos (art. 42).
Com o passar do tempo, esses instrumentos passaram por diversos aperfeiçoamentos. Como exemplo, citem-se as inovações trazidas pela Lei 13.848, de 25 de junho de 2019 (Lei Geral das Agências Reguladoras) no processo decisório das agências reguladoras, seja no que diz respeito à sua relação direta com a sociedade civil, seja no que diz respeito à sua relação com outras instituições. Como exemplos desse incremento no nível transparência dessas agências, podem ser mencionadas, aqui, o fortalecimento dos seus sistemas de ouvidoria, o aprimoramento dos instrumentos de gestão estratégica, a divulgação das agendas regulatórias e a adoção de novos meios de accountability, como, a Análise de Impacto Regulatório (AIR).
Numa comparação com o cenário institucional de quase três décadas atrás, e sempre com a ressalva de que melhorias que incrementem a eficiência esperada da atuação das agências sempre serão bem-vindas, é inegável que predomina, no Brasil, um patamar muito superior de transparência ao que se viu no passado. E, a despeito de que o Brasil ainda não seja membro efetivo da OCDE, as suas agências reguladoras – embora em diferentes intensidades – têm se mostrado players que se fazem ouvir pela qualidade de sua atuação, inclusive no que diz respeito à adoção das recomendações de boas práticas de accountability provenientes de tal organização internacional. Afinal de contas, é pela transparência que se mitigam a crescente assimetria de informações e a crescente complexidade nos serviços regulados e, portanto, os riscos de falhas de governo que, episodicamente, rodeiam as agências reguladoras, como um todo, tanto no Brasil, como mundo afora.
[1] RIGGS, John A. High Tension: FDR’s Battle to Power America. New York: Diversion Books, p. 48 et seq.
[2] RIGGS, John A. High Tension: FDR’s Battle to Power America. New York: Diversion Books, p. 222 et seq.
[3] COASE, Ronald H. The Federal Communications Commission. Journal of Law and Economics, Vol. 2, p. 1-40, Oct. 1959.
[4] Cf. OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Regulatory Enforcement and Inspections, OECD Best Practice Principles for Regulatory Policy. OECD Publishing, Paris, 2014, p. 47 et seq. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/9789264208117-en>. Acesso em 01 mar. 2023; e OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Regulatory Impact Assessment, OECD Best Practice Principles for Regulatory Policy. OECD Publishing, Paris, 2020, p. 14 et seq. Disponível em: <https://doi.org/10.1787/7a9638cb-en>. Acesso em 23 mar. 2023, tradução livre.
[5] ONU – Organização das Nações Unidas. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Disponível em <https://brasil.un.org/pt-br/sdgs>. Acesso em: 14 abr. 2023.
[6] BRASIL. Controladoria-Geral da União – CGU. Novos Enunciados CGU, 2023. Disponível em: <https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/cgu-conclui-revisao-dos-sigilos-impostos-a-documentos-de-acesso-publico/NOVOSENUNCIADOSLAICGU2_9.54.pdf/@@download/file>. Acesso em 24 mar. 2023.