Discriminação indireta e justiça constitucional

Os direitos fundamentais ocupam posição de centralidade nos ordenamentos jurídicos democráticos, funcionando como balizas para as interações entre o Estado e os seus cidadãos (dimensão subjetiva clássica dos direitos fundamentais) e para as relações entre particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais), além de serem vetores que conduzem toda a atuação estatal, na elaboração de leis, na tomada de decisões, no desenvolvimento e na condução de políticas públicas.

Nessa conjuntura, o art. 5º da Constituição brasileira de 1988 ecoa norma internacional de direitos humanos de proteção da igualdade como o princípio estruturante, ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Trata-se de uma concepção tradicional de igualdade em sentido formal, que pressupõe tratamento universalista e neutro pela norma jurídica.

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Se, por um lado, esse tratamento igualitário pela lei é relevante conquista histórica, por outro, não se pode negligenciar que ele é insuficiente para lidar com problemas estruturais dos nossos arranjos sociais, como a desigualdade cultural, que hierarquiza grupos sociais.

Com efeito, o padrão cultural brasileiro é fundado em modelo patriarcal eurocêntrico, o que coloca homens brancos em posição de privilégio social em relação a outros grupos sociais, como negros, mulheres, indígenas, homossexuais etc., que são histórica e sistematicamente excluídos do processo político.[1]

Nesse cenário, as potencialidades de desenvolvimento dos cidadãos que não se inserem no padrão hegemônico patriarcal eurocêntrico são proporcionalmente menores, à medida que se distanciam desse modelo cultural, por meio dos marcadores sociais da desigualdade.

Tudo isso conduz a uma tendência de perpetuação dos arranjos sociais tradicionais, diante da grande dificuldade de rompimento das barreiras da injustiça cultural. É por isso que, paralelamente ao conceito formal de igualdade, são acrescentadas perspectivas de igualdade substancial, como a igualdade material enquanto mecanismo de redistribuição de renda; e a igualdade material como diretriz de reconhecimento e proteção de categorias identitárias.[2]

Em contextos de grande desigualdade no plano fático, os cidadãos não devem ter o mesmo tratamento. Ao contrário, o Direito surge como instrumento de Justiça social, para reduzir as desigualdades, de modo que o ordenamento jurídico pode tratar pessoas de maneiras distintas, com a finalidade de promover igualdade substancial.

A fim de combater injustiças existentes no plano fático, o Direito pode atuar tanto por meio de estratégias punitivo-repressivas, punindo determinada conduta que se quer repelir da sociedade,[3] como por estratégias promocionais ou ações afirmativas,[4] que são medidas compensatórias temporárias que visam a acelerar a igualdade como processo.[5]

O próprio texto constitucional brasileiro estabelece, para além da igualdade formal, que são objetivos fundamentais do Brasil “reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, III e IV), abrindo espaço para um tratamento jurídico diferenciado para pessoas ou grupos sociais em situações distintas.

Essas reflexões não são propriamente novas, especialmente na jurisdição constitucional, que tem promovido a tutela jurisdicional da igualdade em sentido substancial.

Há fartos precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) em que foram efetivados, por meio de decisões judiciais, direitos fundamentais de grupos sub-representados politicamente, como o acórdão que reconheceu a união estável homoafetiva (ADI 4.277, Rel. Min. Ayres Britto); a decisão que determinou a aplicação de incentivos às candidaturas negras na política (ADPF 738, Rel. Min. Ricardo Lewandowski); o julgamento que assentou a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, por afrontar a igualdade de gênero (ADPF 779, Rel. Min. Dias Toffoli); e os julgados que determinaram a adoção imediata de expedientes para salvaguardar pessoas em situação de perigo, como os indígenas durante a pandemia de Covid-19 (ADPF 709, Rel. Min. Roberto Barroso) e a população em situação de rua, especialmente durante o inverno (ADPF 976, Rel. Min. Alexandre de Moraes).

Portanto, trata-se de temática já há anos em ascensão no âmbito do Direito Constitucional, mas que tem conduzido juristas a refletirem sobre um sub-ramo denominado direito antidiscriminatório, que seria a área do conhecimento e da prática jurídica relativa a normas, institutos, conceitos e princípios sobre o direito de igualdade como mandamento proibitivo de discriminação, aí incluídos os instrumentos normativos, nacionais e internacionais.[6]

O desenvolvimento de uma dogmática jurídica do direito antidiscriminatório é assaz importante para compreender a concepção e o alcance das discriminações vedadas pela ordem jurídica, por meio do estabelecimento de categorias de análise, como as discriminações indiretas, consubstanciadas em atos ou normas aparentemente neutros, sem intencionalidade discriminatória, mas que têm um impacto desproporcional na vida de certos grupos vulneráveis.

Isso porque, na seara jurídica, a relação da norma com os sujeitos pode ser construída por uma hermenêutica estruturalmente discriminatória, sob o pretexto de uma neutralidade e de um sujeito universal ilusório. Portanto, questionar certas imparcialidades aparentes pode ser um caminho para combater discriminações culturais e gerar transformação social.[7] Em outros termos, a aplicação da igualdade simétrica e linear pode ser instrumento legal para a prática de arbitrariedades, ainda que não intencionais.

Discriminação pode ser compreendida como ato arbitrário nas interações sociais, oriundo de preconceito, este consubstanciado em percepções mentais negativas sobre coletividades ou indivíduos. Seu conceito está tradicionalmente associado aos elementos arbitrariedade e intencionalidade. Porém, apesar da ausência de intencionalidade discriminatória, certos atos e normas podem ter um impacto desproporcional na vida de grupos vulneráveis.

Para ilustrar esse ponto, cita-se o julgamento do caso Bowers v. Hardwick, em que a Suprema Corte dos EUA declarou a constitucionalidade de legislação do estado da Geórgia que criminalizava, com reclusão de até vinte anos, a sodomia. Um dos fundamentos dessa decisão reside no fato de que referida lei não fazia distinções ostensivas quanto à natureza das relações – se homo ou heterossexuais.

Apesar de, na prática, implicar impacto desproporcional à população LGBTQIAP+, a temática não foi deliberada à luz do princípio da igualdade, mas da intimidade, tendo a corte assentado que a proteção da vida privada não acoberta todas as práticas cometidas na sociedade, sendo legítimo ao Estado, com fundamento na moral organizadora da sociedade e na fé judaico-cristã predominante, criminalizar a sodomia, por ser “comportamento antinatural”.[8]

Esse precedente evidencia que o sistema protetivo do direito à igualdade se consolidou globalmente em uma cultura jurídica delineada em padrões liberais.[9] Porém, essa perspectiva é incompatível com o tipo de interpretação e prática exigidos no atual paradigma de Estado Constitucional de Direito, que demanda uma hermenêutica inclusiva de diferentes grupos culturais, atenta às diferenças estruturais na sociedade e aos impactos desproporcionais que grupos vulneráveis podem sofrer, mesmo diante de normas jurídicas aparentemente neutras.

Dezessete anos após a decisão proferida em Bowers v. Hardwick, a Suprema Corte dos EUA voltou a apreciar esse mesmo assunto no julgamento Lawrence v. Texas (2003),[10] oportunidade em que procedeu à superação do entendimento anterior (overruling), tendo a corrente vencedora assentado que houve diversas mudanças no mundo entre os julgamentos de Bowers (1986) e Lawrence (2003) que tornaram o primeiro precedente absolutamente insustentável, porque incoerente com a cadeia de decisões da corte sobre proteção da privacidade.

Assim, assentou que as pessoas, em ambiente doméstico, estão no âmbito mais íntimo de sua privacidade, e a realização de atos sexuais está no âmago da intimidade, donde o Direito não pode intervir por meio de normas penais, de legislações que criminalizam condutas tentando impor uma moral dominante.

Além disso, a Suprema Corte dos EUA afirmou que, embora majoritariamente haja padrão moral na fé judaico-cristã na cultura norte-americana, esse padrão moral dominante não pode ser imposto a toda a sociedade.[11] Esse fundamento é muito relevante, porque serve para efetivar a proteção jurisdicional de todos os grupos vulneráveis e minorias culturais contra decisões majoritárias violadoras de direitos fundamentais.

A alteração de entendimento da Suprema Corte dos EUA para promover a tutela jurisdicional dos direitos da população LGBTQIAP+ pode se justificar, de um lado, pelo transcurso do tempo e pela pressão interna e internacional em prol da observância dos direitos humanos, mas também, por outro lado, pelo desenvolvimento de uma dogmática jurídica do direito antidiscriminatório, que identifica violações à igualdade em sentido substancial independentemente da existência de intencionalidade ou arbitrariedade do ato discriminatório.

Olhar atentamente às diferenças estruturais nos arranjos sociais e aos impactos desproporcionais que as discriminações indiretas podem implicar em relação a indivíduos e grupos vulneráveis é essencial na luta contemporânea contra as discriminações, na medida em que as arbitrariedades, em geral, não se operacionalizam mais de modo ostensivo.

Essa hermenêutica focada no impacto desproporcional de discriminações indiretas em relação a grupos vulneráveis tem sido crucial para a tutela jurisdicional do direito à igualdade em sentido substancial, notadamente para o reconhecimento e a proteção de categorias identitárias que sofrem discriminações históricas e sistemáticas.

O caso da proibição de doação de sangue por homens gays no Brasil exemplifica o fenômeno em território pátrio. Na controvérsia, argumentava-se que as restrições eram baseadas em dados técnicos, e não na orientação sexual, razão por que não haveria discriminação.

A corrente minoritária, representada por quatro ministros, compreendeu que a corte deveria adotar postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas fossem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados. Entretanto, por maioria de votos, o plenário declarou a inconstitucionalidade de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que excluíam do rol de habilitados para doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes”.[12]

Nessa controvérsia, não se desconhece que as normas foram editadas com a finalidade nobre de proteção ao doador, ao receptor e aos profissionais envolvidos na doação de sangue. Portanto, não há intencionalidade ou arbitrariedade aparente nas normas impugnadas. Entretanto, ao exigir abstenção sexual durante doze meses para a doação de sangue por homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais, a norma acarretou impacto desproporcional nesse grupo.

De mais a mais, as normas ainda atrelaram comportamentos de risco a um grupo cultural específico, sem considerar condutas particulares, como o uso de proteção durante a relação e o fato de o doador ter parceiro fixo, informações que impactam significativamente no risco das condutas.

O reconhecimento da existência de discriminações indiretas em atos estatais foi essencial para essa decisão acertada do STF, assim como tem sido em diversos outros casos julgados no Brasil e no Direito Comparado.[13] Diante desse cenário, o desenvolvimento de categorias centrais, como a discriminação indireta, pelo direito antidiscriminatório tem o condão de sofisticar a hermenêutica constitucional e colaborar para uma atuação mais eficiente da Justiça constitucional na luta para eliminar ou reduzir as disparidades culturais entre grupos sociais.

[1] RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019

[2] FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e participação. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002: 7-20.

[3] Em alguns casos, a própria Constituição determina o tratamento rigoroso – comando conhecido como mandado de criminalização –, como quando dispõe que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5°, XLII, CF). Em outras hipóteses, a medida é adotada pela legislação infraconstitucional, como fez a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) em relação à violência doméstica contra as mulheres.

[4] PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas e direitos humanos. Revista da Universidade de São Paulo, n. 69, mar.-mai. 2006.

[5] Um exemplo notório são as cotas raciais para o acesso a cargos públicos, que foram previstas pela Lei 12.990/2014. Também podemos citar como ação afirmativa o percentual mínimo (30%) para candidaturas femininas na política, conforme o art. 10, §3°, da Lei 9.504/1997

[6] RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; SCHÄFER, Gilberto. Direito da antidiscriminação e direitos de minoriais: perspectivas e modelos de proteção individual e coletivo. Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 1, p. 126-148, jan./abr. 2017. p. 131.

[7] FACHIN, Girardi Melina; PEREIRA, Yago Paiva; SANTANA, Nahomi Helena de: Por um Direito Constitucional antidiscriminatório e antirracista. In. Consultor Jurídico. Observatório Constitucional. 19 nov. 2022.

[8] Bowers v. Hardwick 478 U.S. 186 (1986).

[9]MOREIRA, Adilson José. Tratado de Direito Antidiscriminatório. São Paulo: Contracorrente, 2020, p. 36.

[10] Lawrence v. Texas 539 U.S. 558 (2003).

[11] HALL, Kermit L. The Oxford Companion to the Supreme Court of the United States. Oxford University Press, 2005, p. 572.

[12] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.543, Rel. Min. Edson Facil, Tribunal Pleno, DJe de 26/8/2020.

[13] Embora este ensaio tenha feito um recorte metodológico para apresentar casos relativos à população LGBTQIAP+, as considerações feitas são igualmente válidas para a tutela jurisdicional de direitos de outros grupos vulneráveis, como mulheres, minorias étnicas e negros. A título de exemplo complementar onde essas reflexões foram aplicadas a outro grupo cultural, cita-se o julgamento do Habeas Corpus 208.204, Rel. Min. Edson. Fachin (perfilhamento racial), em que o Supremo Tribunal Federal decidiu que a que abordagem policial motivada por cor da pele é ilegal.

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