Em um contexto pós-pandemia, surge a necessidade premente de os governos avaliarem seus sistemas tributários, considerando o agravamento da desigualdade social durante esse período, bem como a urgência de equilibrar receitas e despesas, além de impulsionar o crescimento econômico dos países, sobretudo quando a reforma tributária é objeto de discussão por décadas.
Os países da América do Sul não ficaram alheios a essa conjuntura. Em 2022, a Colômbia aprovou uma reforma tributária, seguida em 2023 pelo presidente do Chile, Gabriel Boric, que apresentou um novo projeto de reforma tributária para o país. Nesta mesma linha, o Brasil em dezembro de 2023 promulgou a reforma tributária, por meio da Emenda Constitucional 132 (EC 132).[1]
Com a aprovação da reforma tributária no Brasil, estamos próximos da extinção dos velhos tributos incidentes sobre o consumo (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) e o surgimento de novas figuras tributárias: Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), Imposto Seletivo (IS), ambos de competência da União e Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados, municípios e o DF.
Contudo, no que tange aos regimes aduaneiros especiais, a discussão foi negligenciada nos debates sobre a reforma tributária, sendo incluído no texto da Emenda somente durante a análise do projeto pelo Senado.
Como regra geral, a EC 132/2023, estabelece que o IBS, assim como o CBS, não serão objeto de concessão de incentivos fiscais e financeiros ou regimes específicos, no entanto, o dispositivo legal abre exceção às operações de comércio exterior[2]. Dessa forma, a Emenda Complementar nos termos do art. 156-A, §5º, inciso VI[3] da CF/88, que prevê a aplicação dos regimes aduaneiros especiais (RAEs) conforme o art. 149-B da CF, a EC 132/2023.
Apesar da inclusão no texto da Emenda Constitucional, não ficou claro quais espécies estão abrangidas e, consequentemente, quais serão contempladas nas leis complementares que serão promulgadas. Este dilema é justamente a motivação do presente artigo, que busca jogar luz para normas que tendem a ser observadas na regulamentação da EC 132 e analisar o andamento da regulamentação dos regimes aduaneiros especiais (RAEs).
Porém, antes de compreender especificamente os RAEs, é fundamental entender o conceito das aduanas. Segundo a definição de Ricardo Basaldúa[4], as aduanas são consideradas portas incontornáveis para o trânsito de mercadorias, sendo, portanto, responsáveis por facilitar o comércio exterior.
Nesse contexto, os regimes aduaneiros especiais são procedimentos diferenciados de controle aduaneiro aplicáveis em determinadas operações de entrada e saída de produtos em território nacional, que são desonerados de pagamento de tributos. Assim, os regimes aduaneiros especiais, não são isenções ou subvenções, mas procedimentos de controle aduaneiro das destinações de interesse público decorrentes de tratados internacionais ou de políticas públicas de desenvolvimento nacional a elas vinculadas[5].
Vale ressaltar uma diferenciação, que é objeto frequente de dúvidas, entre o regime aduaneiro especial e o regime tributário especial. O regime tributário especial se encontra regulado pelo Decreto-lei 37/1966, possui um conteúdo tributário visando a isenção e alíquota zero para determinados produtos e segmentos, como é o caso do Repes, Recap, Padis, enquanto o regime aduaneiro especial se encontra regulamentado pelo Decreto 6.759/2009 no Livro IV.
A exemplo do que se enquadra como RAE’s, há os depósitos aduaneiros, definidos na Convenção de Quioto (Decreto 10.276/2020), e nos quais a mercadoria pode ser armazenada sob o controle aduaneiro com a suspensão dos tributos até que ocorra seu desembaraço. Outro exemplo é o drawback-isenção que permite a aquisição desonerada, no mercado interno ou importado, de insumos equivalentes aos utilizados ou consumidos na industrialização do produto importados, para que seja posteriormente exportado.
Segundo relatório do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, das exportações brasileiras em 2022, o equivalente a US$ 71 bilhões (21,2%) foram feitas utilizando o regime especial aduaneiro drawback, o que demonstra a importância dos regimes aduaneiros especiais para a balança comercial brasileira[6].
Apesar da importância dos RAEs, a regulamentação da reforma tributária por leis complementares deixa em aberto inúmeras dúvidas sobre o futuro do instituto, surgindo o questionamento sobre quais espécies serão abarcadas ou excluídas pelo legislador.
Atualmente, os RAEs estão previstos no Livro IV, do regulamento aduaneiro (Decreto 6.759, de 5 de fevereiro de 2009), que define e explica o funcionamento de dezessete espécies, a exemplo do trânsito aduaneiro, admissão temporária, drawback, entreposto aduaneiro, Recof, Recom, exportação temporária, Repetro, Repex, Reporto e outros.
Assim, é razoável supor que o legislador, ao elaborar a lei complementar, tenha como referência o Decreto 6.759/09, visto que constitui o único dispositivo que trata de forma sistemática dos regimes aduaneiros especiais. Também chama atenção o Decreto 37/1966, que fundamentou o referido decreto, mas que além de prever os regimes tributários especiais mencionados anteriormente, possibilita a instituição de novos regimes aduaneiros por meio de ato infralegal (art. 93).[7]
Dessa forma, apesar da EC 132 prever a regulamentação dos regimes aduaneiros especiais por lei complementar, existe a previsão de criação, por ato infralegal, de outros regimes, o que pode distanciar do objetivo simplificador (art. 145, §3º, da CF) da reforma tributária.
Ademais, há os tratados internacionais, representantes da extrafiscalidade no âmbito aduaneiro, que objetivam tornar o país economicamente atrativo para o comércio internacional, ligando-se umbilicalmente com os objetivos extrafiscais dos RAEs, qual seja estimular a saída e entrada de determinadas mercadorias. Portanto, as disposições dos tratados que o Brasil é signatário são fontes necessárias para o legislador da reforma se ater.
Quanto à efetiva regulamentação dos RAEs, até o momento há apenas o Projeto de Lei Complementar 68/2024, que traz disposições gerais da CBS e do IBS, e elenca no Título II, capítulo I, alguns regimes aduaneiros especiais aplicáveis aos referidos tributos. Os RAEs mencionados são: regime de trânsito (artigo 83); regime de depósito (artigos 84 e 85); regime de permanência temporária (artigos 86 e 87); regime de aperfeiçoamento (artigos 88 a 90); Repetro, vigente até 2040 (artigo 91); Reporto, vigente até 2028 (artigo 98); e Reidi (artigo 99).
Portanto, o que o legislador fez até então é apenas a regulamentação dos regimes aduaneiros especiais aplicáveis ao IBS e CBS, não uma disposição taxativa das espécies de RAEs, mantendo a dúvida sobre o efeito da reforma tributária na aduana.
Em resumo, tem-se que os RAEs atualmente se fundam, majoritariamente, no Decreto 6.759/2009 (Livro IV), devendo manter olhar atento ao Decreto-Lei 37/1966, que contempla a possibilidade de instituição de novos regimes aduaneiros por meio de ato infralegal, levantando questões sobre a harmonização entre as normativas existentes e as possibilidades posteriores à reforma.
[1] Informações sobre a reforma tributária colombiana disponível em [https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/11/congresso-colombiano-aprova-reforma-tributaria-com-aumento-de-impostos-sobre-petroleo-e-ricos.ghtml] Informações sobra a tramitação da reforma tributária chilena disponível em [https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2jpn9z0yjeo]
[2] GAETA, Holanda Flávia. Comentários à EC 132/2023: Reforma tributária. São Paulo:Thomson Reuters Brasil, 2024.
[3] Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios. § 5º Lei complementar disporá sobre: VI – as hipóteses de diferimento e desoneração do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação;
[4] BASALDUA, Ricardo Xavier. A aduana: conceito e funções essenciais e contingentes. Trad. Onofre Batista Júnior e Samuel Giovanni Guimarães. In. SILVA, Paulo Roberto Coimbra; JÚNIOR, Onofre Alves Batista Júnior. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022., p. 240-247.
[5] Sehn Solon. Curso de direito aduaneiro. 1 ed- Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.324.
[6] Os regimes aduaneiros especiais na Reforma Tributária | Blog GEN Jurídico. Disponível em: <https://blog.grupogen.com.br/juridico/uncategorized/os-regimes-aduaneiros-especiais-na-reforma-tributaria/>. Acesso em: 28 mar. 2024.
[7] Art.93 – O regulamento poderá instituir outros regimes aduaneiros especiais, além dos expressamente previstos neste Título, destinados a atender a situações econômicas peculiares, estabelecendo termos, prazos e condições para a sua aplicação.