Segundo o dicionário Caldas Aulete, um mantra pode ser definido como “fórmula mística e ritual recitada ou cantada repetidamente pelos fiéis de certas correntes budistas e hinduístas” e é neste contexto que buscamos debater sobre o tema indisponibilidade do interesse público e qual deveria ser o seu real alcance.
Trata-se, segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro[1], de um princípio decorrente da própria supremacia do interesse público. Já Celso Antônio Bandeira de Mello[2] define que “todo o sistema do Direito Administrativo, a nosso ver, se constrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e indisponibilidade do interesse público. A indisponibilidade do interesse público significa que sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis“.
Sem embargos de dúvida quanto a nobreza e até a justificativa razoável para esse princípio, que antepara um muro contrastante entre público e privado, disponível e indisponível, sintetizando em polos dicotômicos os efeitos da existência da previsão legal, sendo permitido para o direito público aquilo previsto pela lei, e que não seja proibido para os particulares.
Essa lógica funcionou, e ainda funciona, bem até certo momento, mas parece recalcitrante repeti-la como um mantra diante de situações que lesam direitos de indivíduos, ou que subjugam o particular perante a Administração Pública, como é muitas vezes a condução de casos no Direito Administrativo Sancionador (DAS).
Ainda que a Lei de Liberdade Econômica tenha textualizado a vulnerabilidade do particular perante o Estado e o texto constitucional que estabeleça a presunção de inocência como direito fundamental, há muito para se avançar. E esse avanço passa inexoravelmente por definir o exato alcance da indisponibilidade do interesse público ou, pelo menos, qual é o interesse público a ser perseguido: o ressarcimento ao erário, a punição ou a preservação de garantias fundamentais ou a segurança e estabilidade jurídica.
Não que estes fatos sejam antagônicos, mas todo processo se desenvolve com base em regras legais, direito posto e não pressuposto, não parecendo sequer republicano imaginar que uma dívida não prescreva com o fundamento de que o bem lesado, por ser dinheiro público, seria imprescritível.
O texto constitucional e legal foi sábio e não parece neles haver janelas para se pensar diferente disso, considerando que a falta ou a falha na persecução administrativa do devedor representa, inegavelmente, violação de uma função administrativa. Pois quem deveria instruir, e não o fez, ou quem deveria mandar instaurar e não fez, assume para si o ônus de reparar a prescrição reconhecida em favor de outrem, podendo até ser tipificada a prevaricação, a depender do caso.
A nosso ver, sobre o tema da prescritibilidade, parece não haver dúvidas, e as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF)[3], do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR)[4] e da própria Justiça Federal[5] conduzem bem o tema, e a pergunta não é, ou deveria ser, se é imprescritível, mas quem deu causa a prescrição?
A entender que um dado valor é imprescritível, não se materializa a desídia de quem deveria instaurar, instruir, julgar, e não o fez, já que ao fim, e ao cabo, o valor foi ressarcido, ou pelo menos, o crédito constituído e cobrado?
Não parece ser harmônico aos deveres e responsabilidades dos agentes públicos que se possa ter algo imprescritível, se para um direito disponível há. Ora, o eventual desleixo ou negligência de um particular, em buscar pelo seu crédito, somente prejudica a ele próprio. Logo, se houve essa situação (a ser apurada em PAD) provocada por um agente público, que nele repercuta o ônus de reparar ao erário, pois a tese da imprescritibilidade parece ser até contraditória ao conceito da indisponibilidade e da cúria que tanto se defende.
Recentemente, o ministro do STF Luís Roberto Barroso nomeou o economista chefe do Cade, Guilherme Resende, para assessorá-lo na elaboração de votos e na gestão orçamentária da instituição, e este alvissareiro fato traz consigo uma boa oportunidade de se lançar luz sobre o conceito de bem público, não o jurídico, aquele que todos sabemos do Código Civil (artigos 98 a 103), mas o conceito econômico.
Os bens públicos, em sua feição econômica, são caracterizados por serem bens não rivais, não excludentes, sendo caracterizados como uma falha de mercado. E, nesse sentido, instala-se sobre os bens não rivais ou não excludentes o comportamento oportunista do efeito carona, basta se pensar numa pessoa que não recolhe impostos mas não é impedida de usufruir dos benefícios da iluminação pública ou da limpeza urbana.
Da mesma forma, a não constituição do crédito administrativo a seu tempo, sem o efeito direto do impedimento de sua cobrança e a responsabilização do agente que deu causa, parece se valer da mesma lógica, incentivando que haja uma tutela sempre tardia ou mesmo um descaso nessa apuração, pois acobertada pelo mantra da indisponibilidade, logo imprescritível.
Os agentes racionais são mobilizados a agir a partir da lógica do trade-off, ou seja, avaliam custos e benefício na tomada de decisão. Ainda que este exercício não seja claro e muitas vezes nem racional, como explicam os vieses de julgamento, sistemas 1 e 2, ruídos e a economia comportamental, a imprescritibilidade parece dar conforto ao estado punitivista ou mesmo apaziguar e acalmar ânimos persecutórios, sendo protegida debaixo do mantra.
E, sendo essa a lógica do sistema, a imprescritibilidade também rui, já que estaria sendo utilizada com notório desvio de finalidade buscando salvaguardar o responsável pela prescrição, e não, de fato, aquele que deu causa.
Sendo o dinheiro, por excelência, um bem fungível, o erário estará sempre protegido, bastando que a persecução seja direcionada a quem deu causa a prescrição, e não desenvolver teses de imprescritibilidade, que não parece dialogar com direito posto e nem com o pressuposto.
[1] “Presente na elaboração da lei e em sua aplicação pela Administração Pública, nas hipóteses previstas no ordenamento jurídico; dele decorre a indisponibilidade do interesse público. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 1120p.
[2] Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009
[3] ADI 5.509/CE e 5.384/MG e tema 0899.
[4] Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas n° 0018574-55.2020.8.16.0000.
[5] 1034076-47.2023.4.01.3400.