Aproximadamente um terço das transações tributárias individuais envolvem empresas sujeitas a processos de recuperação judicial ou falência. Identificar as principais diferenças nos termos de negociação de pessoas jurídicas recuperandas com os agentes privados e públicos é um dos principais objetivos do próximo relatório do Observatório de Transações Tributárias do Insper, linha de estudo vinculada ao Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper.
A Lei 11.101/05 prevê a obrigação do devedor de apresentar certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial. Ocorre que, antes da publicação da Lei 14.112/20, mesmo diante das expressas previsões legais[1], a exigência de apresentação de certidões negativas de débitos tributários para a concessão da recuperação judicial era costumeiramente flexibilizada pela doutrina e pelo próprio Poder Judiciário.
Isso porque os tribunais seguiam entendimento assentado pelo STJ[2], no sentido da impossibilidade de se exigir comprovação de regularidade fiscal da pessoa jurídica recuperanda em razão da inexistência de legislação que disciplinasse parcelamento tributário específico em sede da recuperação judicial, ainda que originalmente previsto[3].
Segundo tal entendimento, diante da inexistência de parcelamento especial, a exigência de regularização do passivo tributário para fins de expedição de certidão de regularidade fiscal como condição para viabilizar a recuperação judicial de pessoa jurídica em crise econômico-financeira ia em desencontro ao principal objetivo do instituto, qual seja, a preservação da empresa, insculpido no art. 47 da Lei de Recuperação Judicial e Falências[4].
No entanto, com o advento da publicação da Lei 14.112/20, a legislação sobre recuperação judicial foi atualizada para, dentre outras novidades, alterar as Leis 11.101/05 e 10.522/02, de modo a prever parcelamentos especiais, bem como a possibilidade de transação tributária.
Mesmo diante da regulamentação dos parcelamentos, alguns tribunais[5], assim como o próprio STJ[6] em determinadas circunstâncias, têm mantido a dispensa da apresentação da certidão de regularidade fiscal para a concessão da recuperação judicial, sob o fundamento de que mesmo com o advento da legislação federal específica, tal exigência permanece incompatível com o instituto, uma vez que os créditos de natureza tributária não se sujeitam ao plano de recuperação judicial.
Sob a perspectiva tributária, a transação tributária de empresas em recuperação judicial ou falência autoriza a negociação prevendo descontos de até 70%, pagamento em até 145 meses prestações mensais e sucessivas, flexibilização de garantias, dentre outras especificidades.
Isso, porque o instrumento, que objetiva a extinção do crédito tributário, operacionaliza-se mediante concessões mútuas, que podem incluir descontos sobre principal, multa e juros e, prazos de pagamento mais elásticos, inexigibilidade de garantias, exame de ações judiciais em curso, histórico de parcelamento dos débitos e até mesmo o porte a quantidade de vínculos empregatícios mantidos pela pessoa jurídica[7].
Assim, as chances de um contribuinte recuperando honrar, paralelamente ao plano de recuperação judicial apresentado aos seus credores privados, o cumprimento de um acordo tributário personalizado, se tornam maiores se comparadas às chances do adimplemento de acordos de parcelamentos genéricos celebrados com o Poder Público.
Nesse contexto, a recuperação judicial e a recuperação fiscal da pessoa jurídica, embora instrumentalizadas em institutos diversos, podem caminhar lado a lado sem interferências. Nota-se, inclusive, que o assunto vem ganhando cada vez mais importância e notoriedade não só entre a Fazenda Pública, que tem buscado regulamentar com mais afinco a negociação de débitos de pessoas jurídicas em recuperação judicial[8], como também entre os próprios contribuintes.
Exemplo prático disso é o levantamento realizado pelo 4º Relatório de Pesquisa do Observatório de Transações Tributárias do Insper[9], que apurou que até o dia 1/7/2022, aproximadamente 35% dos contribuintes que celebraram transações tributárias individuais encontram-se em processo de Recuperação Judicial ou Falência.
O número se torna ainda mais relevante se comparado ao obtido na publicação da edição anterior do relatório, com data base de 30/6/2021, onde apenas 15 dos 47 termos identificados diziam respeito a pessoas jurídicas em recuperação judicial.
Nesse contexto, identificar as principais diferenças nos termos de negociação de pessoas jurídicas recuperandas e os impactos deste no próprio deslinde do processo de recuperação judicial é justamente uma das principais propostas para a próxima edição do Relatório de Pesquisa do Observatório de Transações Tributárias do Insper.
O relatório procurará realizar uma análise comparativa entre os termos pactuados no âmbito dos processos de recuperação judicial ou falência e as condições celebradas com a Fazenda Nacional no contexto da transação tributária, especialmente em relação ao valor da dívida, descontos aplicados, número de parcelas concedidas, garantias apresentadas, dentre outros critérios.
A expectativa é que o relatório, que já está em fase de elaboração, seja disponibilizado no segundo semestre deste ano e traga dados e informações detalhadas acerca dos efeitos e consequências do crescimento exponencial dos acordos de transação tributária envolvendo pessoas jurídicas em recuperação judicial. Com isso, será possível avaliar, entre outras questões, a eficácia da transação tributária para resolução do passivo fiscal de empresas em recuperação judicial, identificar eventuais dificuldades e elaborar sugestões de melhorias dessa política pública.
[1] Lei 11.101/05: Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.
Código Tributário Nacional: Art. 191-A. A concessão de recuperação judicial depende da apresentação da prova de quitação de todos os tributos, observado o disposto nos arts. 151, 205 e 206 desta Lei.
[2] REsp n. 1.187.404/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013
[3] Lei 11.101/05: Art. 68. As Fazendas Públicas e o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS poderão deferir, nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.
[4] Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
[5] TJMG: – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.22.168652-0/000, Relator(a): Des.(a) Adriano de Mesquita Carneiro , 21ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 17/05/2023, publicação da súmula em 18/05/2023
TJRJ: 0055715-56.2022.8.19.0000 – AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARIA CELESTE PINTO DE CASTRO JATAHY – Julgamento: 17/11/2022 – QUARTA CÂMARA CÍVEL
TJDFT: Acórdão 1613599, 07194695320228070000, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, , Relator Designado: LEILA ARLANCH 7ª Turma Cível, data de julgamento: 8/9/2022, publicado no PJe: 21/9/2022.
[6] AgInt no REsp n. 1.726.128/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 27/3/2023
AgInt no TP n. 4.113/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023.
[7] Art. 21, § 1º da Portaria PGFN nº 2838/21.
[8] Como, por exemplo, realizado por meio da Portaria PGFN nº 2.382/21.
[9] Disponível em https://www.insper.edu.br/pesquisa-e-conhecimento/centro-de-regulacao-e-democracia/nucleo-de-tributacao/