Mais da metade dos brasileiros teme que o Brasil possa transformar-se num país comunista, revela pesquisa Datafolha divulgada no último fim de semana. Mas o que a população tem em mente ao falar em comunismo, ideologia que prega a socialização dos meios de produção por meio da superação da propriedade privada?
Vou lhes contar uma situação real que vivenciei no segundo semestre de 2018 para ilustrar como o conceito de comunismo provavelmente significa hoje para o brasileiro médio tudo aquilo que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) propõe-se a combater. Um motorista que conduzia uma van que me levava junto com cerca de 15 estudantes universitários para atividades externas à sala de aula falou que o comunismo era um problema sério do país. Depois de me certificar que, por algum milagre, eu não tinha voltado ao tempo da Guerra Fria, comecei a pensar naquilo que meu interlocutor concebia como parte do comunismo.
Após trocar com ele frases breves, cheguei à conclusão de que comunismo abarcava desde a defesa de maior intervencionismo estatal na economia — na cabeça do motorista, um caminho rumo à socialização dos meios de produção — até a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo — algo condenável segundo comunistas históricos. Por exemplo, como o próprio PC do B registra em seu site, na União Soviética, “[n]o início da década de 1930, a homossexualidade começou a ser vista, em alguns círculos importantes do Estado e do Partido Comunista, como resultado da decadência moral e ideológica da burguesia”.
Substitua burguesia por globalistas e teremos o novo inimigo, não dos comunistas tradicionais, mas da turma que em maior ou menor escala abraça o lema “Deus, pátria e família” e suas variantes que até escamoteiam, mas não negam a raiz fascista desse tipo de pensamento. O globalismo, argumenta a direita nacionalista atual, negaria hoje os valores do indivíduo comum/médio, entre eles a religião, substituindo-os por valores cosmopolitas, sem qualquer enraizamento na experiência da “vida real”.
Ironicamente, em matéria de intervencionismo estatal, o bolsonarismo está mais próximo do comunismo que do liberalismo, haja vista as benesses concedidas aos militares aprovadas com entusiasmo pela base do ex-presidente e a gastança na forma de auxílios de toda a sorte concedidos no contexto da busca pela reeleição.
Bolsonaro, assim, é um caso de sucesso de empreendedorismo político e framing de uma narrativa que associa um rótulo que no passado causou temor entre a direita latino-americana a valores defendidos pelo campo progressista na atualidade e são vistos como sintoma de decadência moral pelos partidários do antipetismo no Brasil.
Sintomático que justamente no primeiro dia após o Tribunal Superior Eleitoral ter decidido pela inelegibilidade de Bolsonaro uma pesquisa tenha demonstrado de forma cabal que os valores que sustentam o bolsonarismo vão muito além de um político ou um partido. Enquanto houver tamanho temor acerca de um fantasma que, em tese, não deveria assustar mais ninguém desde o fim da União Soviética em 1991, a demanda por políticos de extrema direita no Brasil seguirá alta, inclusive nas disputas presidenciais.