Um aspecto que tem sido bastante enfatizado na principal proposta de reforma tributária em discussão, a PEC 45, é o seu potencial de acabar com a chamada guerra fiscal, em que estados e municípios oferecem acordos de redução das alíquotas dos impostos sob sua jurisdição para que investimentos produtivos sejam feitos em seu território, gerando assim mais empregos, crescimento econômico, e prosperidade naquela localidade.
A reforma acabaria com a guerra fiscal ao retirar autonomia tributária dos estados. O ICMS, a principal arma na guerra fiscal à disposição dos estados, passaria a ser incorporado num Imposto de Valor Agregado (IVA) com alíquota única, além de ser cobrado no destino, e não mais na origem. Há no Brasil quase um consenso de que a guerra fiscal é algo ruim para o país. Será mesmo?
A guerra fiscal submete os estados a um tipo de comportamento estratégico conhecido como Jogo de Nash. Se Goiás escolhe um ICMS baixo, ele receberá parte das empresas que operam no vizinho DF, aumentando sua base de arrecadação às custas da erosão da base de arrecadação do DF. Para evitar essa perda de base, o DF também reduz o ICMS, e ambas as unidades da federação acabam arrecadando menos por conta da guerra fiscal. Esse seria então um equilíbrio ruim, sob o ponto de vista da arrecadação. A questão relevante é se uma reforma tributária deve ter como objetivo a arrecadação ou o bem-estar do brasileiro. Evidentemente esses dois objetivos não são coincidentes, e a busca pela máxima arrecadação não levará à obtenção do máximo bem-estar.
Um fato intrigante é que esse aparente consenso sobre o malefício da guerra fiscal só existe no Brasil. A começar pelo nome guerra fiscal. Uma busca no Google Scholar por “fiscal war” traz apenas resultados de trabalhos publicados em português (com o resumo em inglês), ou trabalhos de autores brasileiros traduzidos para o inglês. O resto do mundo se refere a esse fato como competição nos impostos (tax competition). Diferentemente da guerra, que traz nela uma carga de negatividade, a competição soa como algo muito mais desejável.
A competição nos impostos entre os entes subnacionais é absolutamente disseminada no mundo. Na maioria dos países os estados competem com a tributação sobre a renda das firmas e dos indivíduos e sobre o consumo, e os municípios competem com a tributação sobre a propriedade e em alguns casos com a tributação sobre a renda. No Brasil os estados e os municípios recebem uma parcela da arrecadação da tributação da renda de acordo com um critério fixo.
Como a competição nos impostos pelos entes subnacionais requer autonomia, aqui ela só poderia existir no ICMS e IPVA, no caso dos estados, e no IPTU no caso dos municípios. Mas os impostos de propriedade são notadamente ruins como instrumento de competição tributária, por conta de um efeito conhecido como capitalização. Se um município reduz muito o IPTU, os imóveis ficam mais caros, e esse custo de aquisição maior acaba arrefecendo o efeito que o tributo mais baixo teria na realocação de empresas e famílias. O exemplo clássico de livro-texto é Lake Tahoe, nos Estados Unidos. Do lado californiano do lago os impostos de propriedade são altos e as casas mais baratas que as do lado do estado de Nevada, onde os impostos são mais baixos.
Os Estados Unidos, com toda a sua pujança econômica, são um laboratório a céu aberto de inúmeras competições fiscais entre estados e entre municípios. Competem não apenas na atração do capital, como também do trabalho. Naquele país a renda da pessoa física é tributada de forma autônoma por estados e municípios. Residentes da cidade de Nova York, por exemplo, pagam imposto de renda diretamente para três esferas de governo (federal, estadual e municipal). Quando um município vizinho oferece alíquotas menores, ele pressiona a cidade de Nova York a ter mais eficiência com o uso do orçamento público. Isso porque é o balanço entre tributação e qualidade na oferta de serviços públicos que atrai os residentes a permanecerem no município. Portanto, a competição nos impostos tende a aumentar a eficiência do setor público, seja ele estadual ou municipal. Esse é um fato bastante documentado e conhecido dos economistas.
A autonomia tributária dos entes subnacionais, e a competição com impostos gera os incentivos para o desenvolvimento econômico de regiões pobres. Isso é um ponto crucial para um país com profundas desigualdades regionais como o Brasil. As aglomerações produtivas são vantajosas para as empresas. Os fornecedores de insumos estão próximos, a disseminação de novas tecnologias é mais rápida, os custos de transporte até os mercados consumidores tendem a ser menores, a infraestrutura rodoferroviária e portuária tende a ser mais desenvolvida. No Brasil, o estado de São Paulo leva uma vantagem enorme sobre os demais quando uma empresa escolhe onde se estabelecer. Em condições de igualdade tributária, vai todo mundo produzir em São Paulo.
De fato, não muito tempo atrás, o estado de São Paulo concentrava quase toda a atividade industrial do país. A indústria automobilística, por exemplo, que até o início dos anos 1980 localizava-se apenas no ABC paulista, hoje está muito mais espalhada no território nacional. Há fábricas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Pernambuco, Amazonas, e até recentemente na Bahia e no Ceará. No final dos anos 1980 o estado de São Paulo era responsável por 38% do PIB brasileiro. Em 2020 esse número já havia caído para 31%. A competição com o ICMS explica parte desse processo.
A perda de autonomia tributária dos estados e o consequente fim da competição com impostos vai acabar com um canal importante de busca por desenvolvimento econômico nas regiões mais pobres do Brasil. Vai aumentar as desigualdades regionais no país, e vai aglomerar mais a atividade econômica em termos territoriais. Outro resultado esperado é a redução na eficiência dos governos estaduais no tocante ao uso dos recursos públicos.
O sistema tributário brasileiro é completamente disfuncional. Ele inviabiliza o crescimento econômico. O seu nível de complexidade é absurdo. A começar pela tabela de alíquotas de IPI, a TIPI, que é um monstro de centenas de páginas. O custo de conformidade fiscal para as empresas é dos maiores do mundo. Portanto é fundamental que o país se livre dessa amarra e reforme seu sistema tributário. Entretanto, é preciso cuidado para não acabar com aspectos que são eficientes. É perfeitamente possível compatibilizar a simplificação do sistema preservando-se a autonomia tributária dos estados.