Proteção da democracia e renúncia fiscal sem o governo de transição

“Não sou presidente e não vou botar a faixa em Lula”.[1] Com essas palavras, o então vice-presidente da República, Hamilton Mourão, já eleito senador, revelava sua intenção de não exercer o cargo de presidente da República. Revelava sua intenção de não cumprir um costume democrático. A frase se justifica diante do rumor de que o então mandatário se ausentaria do país. O então eleito senador já estava com os olhos no futuro, no Congresso Nacional.

De fato, juridicamente não era o presidente. O art. 79 da Constituição confere suas atribuições: substituir o presidente, no caso de impedimento e sucedê-lo, no caso de vacância. O parágrafo único complementa: “o Vice-Presidente da República, além de outras atribuições que lhe forem conferidas por lei complementar, auxiliará o Presidente, sempre que por ele convocado para missões especiais”. Qualquer outra função deveria constar de Lei Complementar. O Senado tentou.

Em 2019, o Projeto de Lei Complementar 21 pretendeu criar mais quatro atribuições ao vice-presidente: auxiliar o presidente da República, sempre que por ele convocado para missões especiais; participar do Conselho da República; participar, como membro nato, do Conselho de Defesa Nacional; dar assistência direta e imediata ao presidente da República.

Esta última, “assistência direta e imediata”, se desdobrava em mais seis: a) assistência no desempenho das atribuições do presidente; b) na coordenação e na integração das ações do governo; c) na avaliação e no monitoramento da ação governamental e da gestão dos órgãos e entidades da administração pública federal; d) na coordenação e secretariado do funcionamento do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social; e) o auxílio, na supervisão e na avaliação da execução das ações e atividades dos ministros de Estado; f) nas análises de políticas públicas e temas de interesse do presidente da República e na realização de estudos de natureza político-institucional.

Praticamente se tentava conferir ao vice-presidente uma postura quase de presidente, diante da generalidade de algumas atribuições. Mas o Congresso Nacional não votou o projeto e a atuação do vice-presidente ainda dependia da ausência do presidente. E esta ausência aparentemente se concretizou.

No dia 30 de dezembro de 2022, uma sexta-feira, na véspera do fim do mandato, o presidente embarcou para os Estados Unidos em avião presidencial. Por volta de 17h, o avião pousou no Aeroporto Internacional de Boa Vista. Pouco depois das 19h, deixou o espaço aéreo brasileiro e pousou em Orlando, na Flórida, por volta das 23h.[2] Pode-se presumir, então, que até por volta das 19h o presidente ainda estava no comando do país.

Até o dia 29, o presidente estava formalmente no exercício do cargo já que, por exemplo, sancionou a Lei 14.514, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a empresa Indústrias Nucleares do Brasil S.A. Enviou, inclusive, mensagem de veto sobre artigos da lei ao presidente do Senado, publicada no Diário Oficial da União do dia 30.[3] Também editou decretos nesse mesmo dia como, por exemplo, o Decreto 11.316, que disciplinou o auxílio-moradia no exterior e o ressarcimento por locação residencial no exterior.

Para se ausentar do país por mais de 15 dias necessitaria de autorização do Congresso Nacional, conforme prevê o art. 83, sob pena de perda do cargo.[4] Mas o presidente não tinha mais 15 dias de mandato. De fato, seu mandato acabara. Eventual agenda internacional seria cumprida como ex-presidente.

Mas e o vice-presidente? Se entendermos que o conceito de “vacância” ou “impedimento” comporta a ausência do presidente por um dia, o vice-presidente deveria exercer as funções do cargo. Esse é o entendimento do STF, que não admite que constituições estaduais disciplinem o que é “impedimento”, para restringir o acesso de vice-governadores quando há a ausência do governador, mesmo que por um dia. O STF trata o impedimento como uma “ausência temporária”, seja jurídica ou fática.[5]

No caso do presidente que saiu do país para não cumprir um costume democrático, estamos diante de uma causa fática, mas temporária, já que um novo presidente assumiria em menos de 48 horas. Então, o vice-presidente poderia assumir. Mas será que poderia modificar a política fiscal do país? Antes de responder, uma ressalva.

Houve um tempo em que a norma jurídica era pura. Isso significava que a análise de sua validade dependia da norma que lhe era hierarquicamente superior. Mas, para que não houvesse uma redução ao infinito, Hans Kelsen criara a norma jurídica fundamental.[6] Uma norma destituída de valores. À época em que escreveu, Kelsen pensava que poderia evitar que debates políticos, sociológicos, morais, influenciassem a validade da norma. Hoje sabemos que isso é impossível. A norma não está isolada de seu contexto, tampouco da realidade da qual faz parte. A norma tem uma origem, um tempo, um espaço. Tem um fundamento que vai além da dedução lógica-formal. Tem uma estreita conexão com a moral e a política, como sustenta Carlos Nino.[vii]

Voltando à pergunta, então, o vice-presidente não poderia modificar a política fiscal do país. Em razão da peculiaridade do contexto, lhe competiria tão somente transferir o país ao novo presidente, já que restavam poucas horas para o fim do mandato e sua atuação, como entende o STF, é temporária, nos casos de ausência. Diferente é o caso de vacância – como ocorreu em 1992 e 2016 – em que o vice-presidente assume integralmente o cargo de presidente. Ainda assim, com poucas horas para o fim do mandato, não seria democrático alterar a política fiscal do país no último dia do ano, considerando que a população escolheu um novo governo. A própria lei de 2002, que mencionarei adiante, concretiza essa continuidade democrática.

No entanto, nas últimas horas do ano, o vice-presidente editou quatro decretos. Três deles para estabelecer renúncias fiscais e um para declarar luto pela morte do papa Bento 16.

O Decreto 11.321 estabeleceu desconto de 50% para o Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante. O Decreto 11.322, de 30 de dezembro de 2022, reduziu pela metade as alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre receitas financeiras, inclusive nas operações de hedge. Já o Decreto 11.323 estabeleceu crédito financeiro sobre dispêndio para o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores até 2026. As normas foram publicadas em edição extra, porque até as 19h o presidente não estava ausente.

No primeiro dia de 2023, o novo governo editou o Decreto 11.374 e revogou os decretos, menos o do papa. Restabeleceu, por exemplo, as alíquotas anteriores do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras. Diante das diversas demandas que alegavam violação à anterioridade, a União propôs a ADC 84 para amparar a constitucionalidade do novo decreto. Não quero realçar com este ensaio a questão da anterioridade, que a meu ver não foi violada, já que nenhuma expectativa do contribuinte foi frustrada. A questão prévia a esse debate é a própria proteção do regime democrático.

A “democracia é um trabalho árduo”, conforme lembram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.[8] A democracia exige negociações, exige compromissos, exige concessões. Pela democracia, “os membros de comunidades solidárias naturais se tornam conscientes de sua dependência uns dos outros”, como ressalta Jürgen Habermas.[9] Quando se percebe que o outro também existe, que aquele que difere do eu individual também faz parte da comunidade, a função do Estado e do indivíduo se modificam. O que antes estava separado agora se unifica em torno de uma fonte de integração social que é a solidariedade. O reconhecimento de que o outro também é importante.[10] Estado e indivíduo, juntos, devem zelar pelo entendimento entre os cidadãos e pela busca de consenso.

Nesse contexto, a Constituição desejou a continuidade democrática. Quis evitar o rompimento do diálogo tão prejudicial à democracia. Essa a razão pela qual, uma vez eleito um novo governo, deve haver um diálogo entre o governo que sai e aquele que entra. Não é uma opção. A Lei 10.609/2002 protege esse diálogo na transição democrática. De acordo com a exposição de motivos da medida provisória que deu origem à lei, o objetivo da norma é permitir que a equipe designada pelo presidente eleito atue conjuntamente com o governo que se despede, para preservar “a sociedade do risco de descontinuidade de ações de grande interesse público.”

Ninguém duvida que as receitas fiscais se identificam com a ideia de grande interesse público. Com efeito, são instrumentos de atuação de um governo eleito, para que possa cumprir a agenda constitucional. Basta pensar no esforço que se tem feito ao longos dos anos para tentar realizar uma reforma tributária que preserve as receitas fiscais da União, estados e municípios, mas também alivie o ônus tributário dos cidadãos.

Neste cenário, após a eleição de um novo presidente, o vice-presidente, ao assumir temporariamente o cargo, não pode modificar a política fiscal. Caso pretenda modificá-la, deve buscar o consenso com o presidente eleito e sua equipe de transição.

[1] Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/11/16/nao-sou-presidente-e-nao-vou-botar-a-faixa-em-lula-diz-mourao.ghtml. Acesso em: 1 abr. 2023.

[2] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/30/aviao-presidencial-decola-presidencia-nao-informa-se-bolsonaro-embarcou.ghtml. Acesso em: 1. abr. 2023.

[3] Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-454931167. Acesso em 1 abr. 2023.

[4] Constituição, art. 83. “O Presidente e o Vice-Presidente da República não poderão, sem licença do Congresso Nacional, ausentar-se do País por período superior a quinze dias, sob pena de perda do cargo.”

[5] Cf. STF, Tribunal Pleno, ADI 3.647, Rel. Joaquim Barbosa. Pub. 16 mai. 2008 (v. tb. ADI 644-MC /1992, Rel. Sepúlveda Pertence; ADI-MC 887/1993, Rel. Sydnei Sanches; ADI 819-MC /1993, Rel. Celso Mello).

[6] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.217.

[7] v. NINO, Carlos. Derecho, Moral e Y Política: uma revisión de la teoria general del derecho. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2020, p. 133.

[8] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as Democracias Morrem. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 80.

[9] HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Tradução de Denilson Luís Werle. São Paulo: Unesp, 2018, p. 398.

[10] SANTIAGO, Julio Cesar. Solidariedade: como legitimar a tributação? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 51.

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