Congresso, democracia e o golpe reprecificado

“Pior do que o atual Congresso, só o próximo.” A frase, dita como profecia amarga por Ulysses Guimarães, que conhecia por dentro o motor da política brasileira, não serve mais como lamento geracional. O Parlamento tende a piorar não porque “decai” abstratamente, mas porque surrupia, com rapidez, a linguagem do seu tempo — a arte de converter crises em atalhos, princípios em negociação e memória pública em administração do esquecimento.

O plenário do Senado aprovou na última quarta-feira (17/12) o chamado PL da Dosimetria (PL 2162/2023), por 48 votos a 25 (e uma abstenção), e o texto segue para sanção presidencial. A proposta foi vendida como correção de “excessos” e caminho de “pacificação”, mas na prática opera como um dispositivo político mais ambicioso: desloca o debate do que foi (uma tentativa de golpe) para quanto custa (a pena), isto é, transforma o conflito sobre a democracia numa disputa de planilha sobre a punição.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

O conteúdo ajuda a entender o alcance simbólico desse gesto. O projeto altera critérios de dosimetria e execução penal para crimes contra o Estado democrático de Direito, incluindo a regra de evitar soma de penas quando delitos ocorrerem no mesmo contexto (com tratamento de concurso formal), e prevê redução de pena (de 1/3 a 2/3) para condutas praticadas em contexto de multidão, desde que sem liderança ou financiamento.

Também mexe na progressão de regime, estabelecendo um piso de 16,6% para esses crimes, associado a bom comportamento, em desenho que foi justamente o nervo exposto do debate.

O Senado reconheceu, inclusive, a controvérsia sobre “brechas” e efeitos colaterais – uma admissão de que, quando se legisla sob temperatura moral elevada, o texto costuma carregar mais política do que técnica.

A conjuntura em que isso ocorre não é um detalhe: o Parlamento tenta se reposicionar entre duas forças que se alimentam mutuamente. De um lado, a jurisdição de exceção narrada como normalidade (a ideia de que o Supremo precisou “ir além” para conter o colapso); de outro, a política de exceção narrada como vitimização (a ideia de que a democracia exagerou ao se defender).

O PL da Dosimetria é uma forma de ponte, sendo outra forma de dizer “não é anistia”, enquanto produz efeitos que, na arena pública, são lidos como perdão – especialmente porque alcança o repertório penal mobilizado para o 8 de Janeiro e para a “trama golpista”.

Certa vez, Machado de Assis sublinhava: “A generosidade humana não para no perdão das culpas, vai até o conforto do culpado”. Machado escreve isso como quem acende uma luz incômoda sobre a nossa teatralidade cívica: não basta absolver – é preciso acomodar. E é justamente aí que a política brasileira costuma escorregar do perdão para a almofada, da responsabilidade para o arranjo, da verdade para a narrativa tranquilizadora.

Quando o Parlamento legisla sob o signo da “pacificação”, o risco não é apenas reduzir penas, é oferecer ao culpado um tipo de conforto institucional – o conforto de ser reclassificado como “multidão”, “contexto”, “excesso”, “caso humano” –, enquanto a democracia, cansada, tenta chamar de recomeço aquilo que pode ser só a forma mais elegante de esquecer.

É aqui que Paul Ricoeur ajuda a pôr o produto normativo em movimento, para além do tecnicismo. Em A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur insiste que o perdão (quando existe) não pode ser confundido com apagamento: ele exige reconhecimento do dano, trabalho de memória e, sobretudo, responsabilidade.

Um perdão decretado como desconto – sem a espessura do reconhecimento público – tende a virar apenas política do esquecimento: não reconcilia; recalca. E, quando o recalque é institucional, ele retorna como sintoma: cinismo, ressentimento e a pedagogia silenciosa de que “tentar” compensa, porque depois alguém negocia a fatura.

Hannah Arendt lembra que o perdão é uma faculdade rara e politicamente exigente – por isso mesmo, os homens dificilmente perdoam de modo estável. Perdoar não é um “sentimento nobre” que cai do céu, mas um ato que interrompe a cadeia automática da retribuição e da vingança. Em A condição humana, Arendt conecta o perdão ao problema da irreversibilidade: como não podemos desfazer o que fazemos, a vida comum só não fica condenada a repetir o dano quando existe a coragem de reabrir o futuro, mesmo sem garantias.

O ponto incômodo é que, quando o perdão se transforma em expediente – em cálculo para “resolver” o conflito –, ele perde sua densidade moral e vira uma técnica de esquecimento, um jeito elegante de administrar ressentimentos sem enfrentá-los.

Pierre Rosanvallon, por sua vez, oferece a chave do “parlamento dos invisíveis”: a democracia representativa fracassa quando não consegue fazer aparecer – na linguagem comum e nos dispositivos públicos – as vidas e experiências que ficam fora do campo de visão do debate político.

O paradoxo brasileiro é que a invisibilidade virou moeda disputada. Os defensores do PL reivindicam representar os “invisíveis” do 8 de Janeiro – a “infantaria”, a multidão, os sem liderança. Mas a pergunta rosanvalloniana é mais incômoda: quem decide quais invisíveis merecem narrativa, empatia e legislação sob medida? Porque toda operação de visibilização seletiva tem uma sombra: o que ela deixa fora do enquadramento. A democracia não é só contar votos; é também organizar o que pode ser dito sobre a violência política e quem tem direito a aparecer como vítima.

Esse jogo de espelhos se intensifica quando o próprio sistema de justiça atravessa crise de confiança. Nas últimas semanas, ganhou força o debate sobre código de conduta no STF, impulsionado por relatos envolvendo ministros e a reação pública do presidente da corte.

Num ambiente assim, o Parlamento percebe uma janela: se a legitimidade do árbitro está contestada, torna-se politicamente rentável reabrir o placar — e vender a revisão como prudência institucional. Só que há um risco de curto-circuito: quando a política usa a desconfiança no Judiciário para relativizar crimes contra a própria democracia, a “crise de confiança” deixa de ser um problema a resolver e vira ferramenta de engenharia do esquecimento.

O que pode acontecer daqui para frente? Três cenários são plausíveis – e todos carregam custos.

No primeiro, Lula sanciona (integral ou parcialmente). A consequência imediata tende a ser uma onda de pedidos de readequação de penas, porque o direito penal brasileiro admite retroatividade da lei mais benéfica. Politicamente, o governo tenta trocar conflito por normalização, mas paga o preço simbólico: a impressão de que o Estado recuou diante do golpismo, ainda que por via “técnica”.

No segundo, Lula veta (total ou em pontos-chave). O veto pode ser apresentado como defesa de uma linha vermelha democrática – mas alimenta a narrativa de perseguição e reativa a coalizão do “perdão”, com chance real de o Congresso derrubar o veto na volta do recesso, dependendo da correlação de forças.

No terceiro, mesmo com sanção (ou com veto derrubado), o tema migra para o STF,  por judicialização de constitucionalidade e por disputas sobre alcance e interpretação. E aqui mora a armadilha institucional: se o Supremo barra o desenho aprovado pelo Legislativo, reforça a crítica de “supremocracia”; se não barra, arrisca naturalizar um precedente segundo o qual ataques à ordem constitucional acabam reprecificados politicamente.

Quando isso chega ao STF, a armadilha institucional ganha uma camada histórica que o próprio tribunal vem ajudando a reativar: nos últimos anos, a corte produziu gestos relevantes de memória pública ao afirmar que a Constituição não comporta o enaltecimento do golpe de 1964 – inclusive vedando o uso de recursos públicos para promover comemorações alusivas ao golpe, por atentar contra o patrimônio imaterial e a ordem constitucional – e, em paralelo, sinalizou disposição de revisitar o alcance da Lei da Anistia em casos ligados a desaparecimentos/ocultação de cadáver na ditadura.

Essa moldura recente oferece um horizonte hermenêutico para interpretar constitucionalmente o PL da Dosimetria sem cair na tentação de reprecificar politicamente ataques à ordem democrática – por exemplo, por leitura estrita de proporcionalidade, individualização e vedação de incentivos à violência política, e por uma vigilância especial contra “benefícios” que, sob o léxico da técnica penal, produzam uma espécie de anistia por aproximação.

Mas seria ingenuidade ignorar o outro caminho: o STF também pode optar por uma postura conservadora e autocontida, validando o essencial do desenho legislativo (talvez com “interpretação conforme” pontual) como forma de reduzir atrito com o Congresso e recompor governabilidade – um tipo de acordo tácito em que o tribunal preserva capital institucional no curto prazo, ao custo de deixar mais ambígua, no longo, a mensagem de que a democracia não negocia com o seu próprio desmonte.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

A decisão do Senado, portanto, é menos sobre “dosimetria” jurídica e mais sobre memória pública. Democracias não sobrevivem apenas punindo; mas elas também não sobrevivem quando a punição vira variável de barganha para reabilitar o que não foi apenas crime – foi projeto.

Ricoeur lembraria: perdão sem reconhecimento é esquecimento travestido. Rosanvallon acrescentaria: democracia que escolhe seus invisíveis com base no poder de chantagem dos visíveis vira, cedo ou tarde, um regime de representação sem povo – e de povo sem representação.

Se Ulysses estava certo, o “próximo Congresso” piora porque aprende rápido a linguagem do seu tempo: menos compromisso com princípios, mais domínio do roteiro. O PL da Dosimetria é um desses roteiros. Resta saber se a democracia brasileira o lerá como gesto de maturidade – ou como ensaio geral de uma pedagogia perversa: a de que o golpe é condenável, desde que depois seja perdoável.

Generated by Feedzy