O último ato de Barroso como ministro do STF: o aborto legal em cena

Após 12 anos como ministro, Luís Roberto Barroso anunciou sua aposentadoria do Supremo Tribunal Federal, mas não sem antes deixar sua última contribuição tanto para a corte quanto para a sociedade brasileira: pautar o julgamento da ADPF 989/DF.

A ADPF versa sobre as hipóteses em que o ordenamento jurídico brasileiro afirma que a interrupção da gestação não pode ser punida, em outras palavras, questiona ações e omissões estatais que criam barreiras indevidas e impedem a realização dos casos de aborto já autorizados pela legislação.

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Após a liminar não ser referendada, o tema voltou à agenda institucional do Supremo. O julgamento do mérito da ADPF 989 foi pautado no plenário virtual e ainda está em andamento. Trata-se de oportunidade para a corte enfrentar de forma definitiva as alegações de omissão estrutural do Estado brasileiro no acesso ao aborto legal.

Para além das questões processuais, o voto do ministro Barroso no referendo da Medida Cautelar merece atenção pela forma como foi construído: um olhar que integra direito e políticas públicas a partir da análise de evidências.

Com base em estudos científicos, Barroso destacou que entre 2020 e 2022 foram realizados 49.325 partos por meninas de 10 a 14 anos, uma média de 16.441 partos por ano. Segundo o Código Penal, todas essas meninas foram vítimas de estupro. O Anuário de Segurança Pública reforça o cenário: 61,3% das vítimas de estupro no Brasil eram crianças com 13 anos ou menos, o que equivale a 51.677 crianças.

O aborto existe no Brasil[1], mas quem mais sofre com as consequências da sua não legalização plena são as camadas mais vulneráveis da população. De acordo com estudo do Ministério da Saúde, citado por Barroso, a maioria das mortes maternas ocorre entre mulheres pretas, indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 ou mais de 40 anos, morando nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e vivendo sem companheiro. “A atuação da Corte Constitucional, portanto”, escreveu o ministro, “tem por objetivo garantir a efetividade de um direito reconhecido a meninas, mulheres e pessoas gestantes desde a década de 1940”.

O déficit estrutural e a omissão do Estado

Barroso vai além do diagnóstico jurídico e expõe o déficit estrutural na política pública de saúde. Segundo o Cadastro Nacional de Atenção à Saúde, existem apenas 166 hospitais habilitados a realizar aborto legal em todo o país, um número irrisório diante da dimensão continental do Brasil. Entre 2008 e 2015, o Ministério da Saúde registrou uma média anual de 200 mil internações por procedimentos relacionados ao aborto, com 770 mortes maternas nesse período. A maioria, evitável.

Em 2019, levantamento publicado nos Cadernos de Saúde Pública mostrou que apenas 3,6% dos municípios brasileiros contavam com estabelecimentos que realizavam o aborto previsto em lei, concentrados principalmente no Sudeste e em cidades de maior IDH. A desigualdade territorial é flagrante: nas localidades sem oferta do serviço, a taxa de realização de aborto legal foi 4,8 vezes menor.

Mesmo nas unidades oficialmente designadas, a ausência de estrutura é a regra e não a exceção. Um terço dos serviços de referência nunca realizou um único procedimento, e 75% dos abortos legais ocorreram em unidades não cadastradas como referência. Em muitos hospitais, segundo pesquisa de 2022, servidores sequer sabiam informar se o procedimento era realizado, quando não tratavam com hostilidade pacientes.

Além da insuficiência de estrutura, as vítimas de violência sexual enfrentam exigências indevidas. Embora a lei não imponha boletim de ocorrência nem autorização judicial, muitos serviços condicionam o atendimento a esses documentos, reproduzindo uma lógica de desconfiança e revitimização. Em outros casos, gestores exigem provas formais do estupro ou impõem limites arbitrários de idade gestacional, práticas sem respaldo legal e contrárias às orientações do Ministério da Saúde.

Essa mesma questão foi objeto de análise recente do ministro Alexandre de Moraes na ADPF 1141, quando suspendeu resolução do Conselho Federal de Medicina que proibia o aborto após 22 semanas em casos de estupro. A decisão reconheceu que o CFM extrapolou seu poder regulamentar e violou parâmetros científicos reconhecidos pela OMS, o que reforça a leitura de Barroso de que o Estado brasileiro tem falhado sistematicamente em garantir direitos já assegurados há mais de 80 anos.

A violação de direitos fundamentais

Barroso afirma que negar o acesso ao aborto legal em casos de estupro é violar a dignidade humana e a integridade física e psicológica das vítimas. Obrigar meninas e mulheres a levar adiante uma gravidez forçada é, nas palavras do ministro, uma forma de tortura psicológica, posição já consolidada por organismos internacionais de direitos humanos.

A omissão estatal também afronta o princípio da proteção integral da criança: cada parto de uma menina menor de 14 anos representa, segundo o ministro, uma falha do Estado em garantir o direito de não ser mãe na infância. Para o Ministério da Saúde, a gestação nessa faixa etária é uma condição de risco elevado, com maior mortalidade materna e neonatal, um dado que traduz o sofrimento em estatística e a negligência em política pública.

O papel do SUS e as barreiras ao tratamento medicamentoso

O voto também denuncia a limitação injustificada no uso do misoprostol — medicamento seguro e recomendado pela OMS — cujo acesso no Brasil é restrito a hospitais. Apenas 25% das maternidades públicas que poderiam utilizá-lo estão habilitadas a adquiri-lo. Essa determinação, nas palavras do ministro, cria “entraves consideráveis para a prestação adequada de cuidados de saúde” e contribui para um ciclo de exclusão e morte evitável.

A OMS, citada no voto, aponta: procedimentos de interrupção da gestação podem ser realizados com segurança por uma variedade de profissionais, não apenas médicos. Ao proibir enfermeiros e técnicos de enfermagem de administrar medicamentos, o Brasil impõe uma restrição “arbitrária e não baseada em evidências”.

A interpretação constitucional do art. 128 do Código Penal

Barroso conclui seu voto com uma leitura constitucional e contemporânea do art. 128 do Código Penal, redigido em 1940, quando nem sequer havia regulamentação da profissão de enfermagem. Assim como o STF já fizera na ADPF 54 ao reconhecer o aborto de fetos anencefálicos, o ministro propõe reinterpretar a norma à luz da ciência atual: se outros profissionais estão tecnicamente habilitados, não há razão jurídica ou moral para puni-los.

Para ele, negar essa atualização significa perpetuar um anacronismo que impede a proteção de direitos fundamentais. Por isso, propôs a extensão da imunidade penal prevista no art. 128 a profissionais de enfermagem que auxiliem no aborto legal, além da suspensão de processos e de práticas hospitalares que imponham barreiras não previstas em lei.

O encontro do Judiciário com as políticas públicas baseadas em evidências

O último voto de Barroso no Supremo foi menos sobre direito penal e mais sobre direitos humanos. Ele transformou dados em argumentos jurídicos e mostrou que o Estado brasileiro continua falhando em proteger as mulheres que mais precisam. Mais do que uma decisão cautelar, o voto é um chamado à realidade, um convite para que o sistema de justiça e as políticas públicas se reencontrem com a Constituição de 1988 e com a vida concreta das meninas e mulheres brasileiras.

Cada vez mais, o Judiciário é provocado a atuar em temas de políticas públicas. Em todas as instâncias, juízes tomam decisões diariamente sobre saúde, mudanças climáticas, educação, segurança pública, entre outros temas. No entanto, ainda não há uma cultura de uso de evidências nessas decisões. As barreiras para isso são diversas e começam na própria formação oferecida pelas faculdades de direito.

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O voto de Barroso é um exemplo relevante de como evidências científicas podem (e devem) ser utilizadas em decisões de políticas públicas. O Judiciário deveria adotar de maneira mais sistemática e criteriosa o uso de evidências como parte integrante de seu processo decisório, sobretudo em casos que envolvem questões técnicas ou científicas que extrapolam o campo estritamente jurídico.

Ao fazê-lo, o tribunal fortaleceria a qualidade e a legitimidade de suas decisões, evitando o emprego meramente retórico ou simbólico da ciência e promovendo uma deliberação mais informada, transparente e ancorada no conhecimento validado pela comunidade científica, além de favorecer mudanças positivas na sociedade.

Essa prática também contribuiria para consolidar uma cultura institucional de decisões baseadas em evidências, reduzindo a arbitrariedade e aproximando o Judiciário das boas práticas de formulação e implementação de políticas públicas orientadas por evidências.

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