A violência, o Carf e as mulheres

Nas últimas semanas, especialmente, o tema “violência” ganhou grande repercussão nas mídias nacionais.

O mais notável – e que atingiu o grande público – é o tema da violência de gênero. Dezenas de episódios lamentáveis foram trazidos à tona, escancarando a violência física praticada contra as mulheres.

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O tema “misoginia” nunca foi tão debatido. O termo é definido pelo Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa[1] como “antipatia ou aversão mórbida às mulheres”. Esta definição, um tanto superficial, pode ser desdobrada em diversos comportamentos que observamos no nosso dia a dia. É a “piada” contada nas rodas de conversa, é a “risada” que essa “piada” causa, é a ofensa travestida de “brincadeira” ou justificada pelo “sentido figurado”.

A leitura do fantástico texto “Nem monstro, nem doente, nem vil: a hidra da violência de gênero” [2] publicado por Helena Queiroz expõe como as ações do dia a dia demonstram que a presença da violência de gênero está muito mais irradiada na nossa sociedade do que imaginamos, para muito além daquelas situações que insistimos em atribuir aos “monstros” ou aos “doentes”. Conclui, de forma lapidar, que “a violência de gênero não é extraordinária nem obra de seres desviantes: é estrutural, cotidiana e distribuída entre homens comuns.”

A violência de gênero está presente em nossas casas, em nossos círculos de amigos e em nossos ambientes profissionais. Não são “monstros” e “doentes” que a praticam, somos todos nós.

É fato que a violência contra a mulher atinge seu ápice na violência física e no abominável feminicídio. Mas ela não nasce aí, ela nasce em cada pequena conduta do dia a dia, introjetada na nossa sociedade ao longo de anos e anos de “cultura”.

É sobre esse aspecto que esta reflexão se destina, a levar nosso olhar à violência de gênero que ocorre para além dos contextos familiares.

Mulheres a cada dia mais vem alçando altos postos e cargos, na iniciativa privada e no Poder Público, embora ainda longe do ideal da “paridade”. Trata-se de fato notório e indiscutível. De mãos dadas a esse crescimento, nós, mulheres, levamos conosco, diariamente, cada uma dessas “piadas”, “brincadeiras” e “sentido figurado”, assim como rótulos tais como “incisivas”, “questionadoras” e, por vezes, “emotivas”, “temperamentais” e até “desequilibradas” (culpa dos hormônios, afinal).

Ao lado de tal aspecto, já mais restrito ao círculo daqueles que militam junto ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ganhou luz e foi sujeito à inúmeras críticas – sobre as quais não nos debruçaremos – o fato de que os conselheiros representantes da Fazenda Nacional passam a ter direito ao “adicional de periculosidade”, “considerando a situação de exposição ao risco de violência física na realização de sessões presenciais em ambiente laboral aberto ao público”[3].

E, nesse contexto, além dos questionamentos apresentados pela Associação dos Conselheiros dos Contribuintes do Carf (Aconcarf)[4] quanto à necessidade de tratamento isonômico relativamente aos conselheiros representantes da iniciativa privada, que participam das mesmas sessões de julgamento e realizam as mesmas atividades, busca-se questionar se estamos, de fato, atentos às demais formas de violência observadas intramuros.

É de sabedoria coletiva que “roupa suja se lava em casa”, querendo dizer que assuntos embaraçosos de determinado grupo devem ser resolvidos internamente, sem se expor a terceiros ou a estranhos. Mas o importante é que estas roupas sejam, de fato, limpas, e não apenas remendadas ou escamoteadas nos fundos das gavetas.

A questão da licença maternidade (ou da “não licença maternidade”) para as conselheiras representantes dos contribuintes revela uma das facetas da violência de gênero presente. Respeitando e louvando todos os esforços da atual direção do órgão para garantir a estas profissionais a manutenção da sua remuneração integral, mediante prorrogação de prazos para cumprimento de suas metas de trabalho[5], está longe de conceder a estas mães, mulheres, o adequado e necessário tempo de recuperação pós gestacional e de cuidados com seus filhos recém-nascidos.

É mais do que urgente a resolução desse impasse por meio de leis que garantam algo tão caro à nossa sociedade e garantido pela Constituição Federal às mulheres trabalhadoras.

Outro ponto de atenção é a instituição da “paridade de gênero” no âmbito do Carf[6], prevista na Portaria Carf 1.360, de 1º de novembro de 2023, que garante, como ação afirmativa de gênero, a busca pela presença de “no mínimo, 40% de cada gênero nas vagas de conselheiros”, ideal firmemente buscado pela atual administração, mas, infelizmente, ainda não alcançado.

Contudo, devemos nos questionar se tal ação afirmativa de gênero está, realmente, alcançando não apenas a paridade numérica, mas, também, a paridade de tratamento e condições de trabalho entre homens e mulheres.

Precisamos questionar se, nos ambientes de julgamento, compostos majoritariamente por homens, a presença das mulheres está sendo efetivamente respeitada por seus pares masculinos. Se a voz das mulheres julgadoras vem sendo ouvida, se seus questionamentos estão, de fato, sendo levados à debate com a seriedade necessária e se a condição de mulher de suas conselheiras não está sendo utilizada como forma de minimizar situações de constrangimento e desconforto vivenciadas no dia a dia das sessões de julgamento.

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, tem sido não o principal pilar ou balaústre, mas, sim, a verdadeira fundação das vozes femininas nos círculos de poder e decisão. Com colocações célebres como “também nós, mulheres, ficamos dois mil anos caladas, nós queremos ter o direito de falar” e no histórico julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1107), em que se proibiu a culpabilização de mulheres vítimas de violência como instrumento de defesa dos agressores, vem, aos poucos, buscando, no meio jurídico, o saneamento de um contexto histórico extremamente injusto com as mulheres.

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Não esqueçamos, também, da ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal Militar, igualmente voz ativa na defesa da equidade de gênero, que diz ser o olhar feminino absolutamente necessário “especialmente numa ciência humana que vai julgar pessoas e fatos” e, assim como todas nós, mulheres, espera que “as nossas filhas tenham um mundo melhor, mais justo e mais paritário”.

E o que hoje, nós, hoje conselheiras do Carf, mas com sólida bagagem e carreiras profissionais prévias, esperamos, é que tanto nós mesmas, como aquelas que nos venham a suceder, encontremos ali um ambiente muito mais respeitoso à sua condição feminina, desde as ações do dia a dia e trato com seus pares, até os instrumentos legais ainda necessárias para garantir e defender a sua dignidade humana.

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O presente texto representa a opinião pessoal de suas autoras, não representando qualquer posicionamento institucional do Carf

[1] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/misoginia/, acesso em 17/12/205

[2] Nem monstro, nem doente, nem vil: a hidra da violência de gênero; acesso em 17/12/2025

[3] EXCLUSIVO: Carf concede adicional de periculosidade a conselheiros da Fazenda por julgarem processos

[4] Presidente da Aconcarf defende adicional de periculosidade a todos os conselheiros do Carf

[5] https://www.jota.info/tributos/conselheiras-gravidas-e-em-puerperio-poderao-atuar-remotamente-no-carf

[6] http://idg.carf.fazenda.gov.br/noticias/2022-1/carf-publica-portaria-de-representatividade-de-genero, acesso em 17/12/2025

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