Governo propõe nova carreira transversal e acende alerta entre servidores

Em mais uma etapa do movimento de transformação do Estado, o governo federal enviou ao Congresso um pacote amplo de reorganização de carreiras que deve impactar cerca de 200 mil servidores. A proposta tem custo estimado em R$ 4,2 bilhões em um ano, já incorporado ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2026, e reúne reajustes, reestruturações e a criação de 8,8 mil cargos.

Um dos pontos centrais do projeto, enviado à Câmara no início do mês, é a criação da nova carreira transversal de analista técnico do Poder Executivo federal, desenhada para funcionar como um pilar técnico-administrativo comum aos órgãos da administração pública e centralizada no Ministério da Gestão e Inovação (MGI). O pacote resulta de uma série de negociações feitas ao longo do ano entre governo e entidades sindicais. A instituição da nova carreira foi descrita como “histórica” pela ministra Esther Dweck no ato da assinatura da proposta, em 1º de dezembro no Palácio do Planalto. Mas representantes do funcionalismo público se mobilizam para articular alterações na proposta.

Servidores afirmam que o projeto foi finalizado sem diálogo efetivo com algumas categorias e exclui níveis de servidores e aposentados. Também indicam preocupação de que a nova carreira acentue desigualdades no serviço público e represente um desmonte aos cargos estratégicos da Previdência, Saúde e Trabalho.

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A proposta prevê uma reorganização extensa do funcionalismo. Alcança 17% do total de pessoas ativas e aposentadas da administração federal, segundo o governo, e equivale a 1,2% da despesa total com gastos de pessoal previstas para o próximo ano. O texto inclui a criação do cargo de analista em atividades culturais e alterações em planos já existentes nas áreas de educação, cultura, fiscalização e administração pública. Também estabelece reajustes remuneratórios para diferentes categorias, incluindo técnicos-administrativos em educação, médicos, médicos veterinários, auditores da Receita Federal e da Auditoria-Fiscal do Trabalho, e mudanças nas regras de pagamento de bônus a aposentados e pensionistas.

O pacote ainda institui novas gratificações e regimes de trabalho, promove a transformação, criação e extinção de cargos em diversos órgãos, como Ipea, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Ministério da Educação e o MGI. Autoriza também ajustes operacionais, como a realização de exames médico-periciais por telemedicina, e amplia regras de contratação por tempo determinado.

O projeto transformará 9.981 cargos vagos existentes em 7.937 cargos. A maior parte, alocada à nova carreira transversal de analista técnico do Executivo, ou ATE – que absorverá servidores de 13 cargos. Segundo o PL, os ATEs terão atribuições amplas, que incluem planejamento, execução e avaliação de atividades técnico-administrativas em qualquer órgão ou entidade da administração direta, autárquica ou fundacional. Eles passarão a ter uma tabela remuneratória própria, com gratificação de desempenho específica e critérios de promoção padronizados.

A unificação, diz o governo, busca promover o equilíbrio salarial entre esses cargos. A medida tem o intuito de melhorar a retenção de profissionais considerados pelo Executivo como “fundamentais para a melhoria contínua da eficiência administrativa dos órgãos e da prestação dos serviços públicos à sociedade”. Entre os servidores, no entanto, ela acende um alerta.
O secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef), Sérgio Ronaldo da Silva, disse que o principal problema do projeto está no caminho adotado pelo governo para construí-lo. Segundo ele, as mudanças estruturais incluídas no texto não passaram pela mesa de negociação e também não foram apresentados aos servidores os critérios para a inclusão das categorias na nova carreira e nem seus eventuais impactos.

“Queríamos que tivesse sido feito um debate mais profundo. Por que somente foram incluídos alguns cargos? Por que o governo só chamou esses cargos para a carreira de Analista Técnico do Executivo? E os outros cargos de nível superior e intermediário? São perguntas que os servidores fazem para a gente e não sabemos explicar?”, afirma o dirigente da Condsef, organização que representa a maior parte do funcionalismo público federal. Segundo ele, o governo criou grupos de trabalho para produzir estudos técnicos e levantar cenários junto às entidades, porém não sinalizou o que entraria no texto. Ele diz que pontos sensíveis acabaram incorporados ao projeto de lei sem retorno às entidades representativas.

O dirigente sindical considera também que a proposta pode criar assimetrias internas, sobretudo porque alguns servidores receberam gratificações e reorganizações salariais, enquanto outros, como aposentados, ficaram de fora.

A Fenasps, federação que representa servidores das áreas de Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social, considera o cargo “generalista”. Em nota, a entidade diz que, ao centralizar carreiras específicas e estratégicas no MGI, a proposta “ataca a identidade das carreiras finalísticas” e favorece um “desmonte silencioso” dos setores de Previdência, Saúde e Trabalho, o que, futuramente, poderia justificar a eliminação de carreiras por obsolescência forçada.

Outro ponto de crítica é a exclusão de aposentados e pensionistas de algumas gratificações: a Gratificação Temporária de Execução e Apoio a Atividades Técnicas e Administrativas (GTATA), o Bônus de Desempenho Institucional por Análise de Benefícios com Indícios de Irregularidade (BMOB) e a Gratificação Temporária de Proteção e Defesa Civil (GPDEC).

A vedação aparece em trecho do projeto que altera a Lei 10.887/2004, responsável por definir as regras de cálculo dos benefícios previdenciários dos servidores públicos. O dispositivo estabelece que essas três parcelas não integram os proventos de aposentadoria nem as pensões por serem classificadas como gratificações de natureza temporária. No caso da GTATA, o projeto estabelece que a vantagem não compõe a estrutura remuneratória das carreiras, não se vincula a planos específicos e é de livre designação e dispensa pela administração. O objetivo é apoiar atividades técnicas e administrativas consideradas prioritárias, o que, segundo o texto, justifica seu caráter transitório e a exclusão dos benefícios de inatividade.

Para as entidades, a medida quebra a paridade entre ativos e inativos, acentua desigualdades internas e reforça uma lógica de redução da folha às custas de quem já está fora da ativa.

Há também frustração com outros pontos da proposta. Um deles diz respeito à instituição do Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) como um novo instrumento de valorização dos servidores técnico-administrativos das instituições federais de ensino. O RSC permite a concessão de incentivo financeiro com base não apenas em títulos acadêmicos formais, mas também na experiência profissional, na atuação em atividades institucionais, na produção técnica e intelectual e no exercício de funções relevantes.

Os termos para isso apresentados no PL desagradaram os servidores da área de educação. A Fasubra, principal representante dos trabalhadores técnico-administrativos em educação das instituições de ensino superior públicas, considera que o texto enviado pelo governo federal rompe o acordo construído com a categoria. Segundo a entidade, o modelo proposto restringe o acesso ao benefício e exclui cerca de 70% da categoria, além de deixar de fora aposentados e pensionistas, servidores em estágio probatório e doutores.

Segundo Sérgio Ronaldo, a Condsef aguarda um estudo em elaboração pelo Dieese sobre os principais impactos do projeto para articular uma contraproposta. Com a avaliação mais robusta em mãos, as entidades querem dialogar com o governo e planejam se movimentar no Congresso para reparar pontos considerados “mais danosos” por meio de emendas.

O projeto foi enviado à Câmara pelo governo, onde tramita como PL 6170/25, em regime de urgência constitucional. Dessa forma, deverá ser votado em plenário até 1º de março, 45 dias depois de sua apresentação, sob pena de trancar a pauta da Casa. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), pediu a tramitação em conjunto a uma outra proposta do governo que autoriza a criação de novos cargos efetivos no MEC e no MGI, o PL 5874/2025 – enviado em novembro também com urgência constitucional. Se aprovado o apensamento de um projeto ao outro, a apreciação da reestruturação de carreiras pode ser ainda mais rápida, com prazo para ser levado ao plenário da Câmara até 12 de fevereiro.

Ao JOTA, o MGI disse que a elaboração do PL foi baseada “em diagnósticos sobre a fragmentação das carreiras do Executivo federal análises comparadas e discussões internas em grupos de trabalho e interlocuções institucionais com diferentes segmentos do funcionalismo”. O envio do projeto ao Congresso, diz o ministério, marca uma nova etapa do debate. 

“A proposta não esgota o tema e o processo de transformação da gestão de pessoas seguirá sendo conduzido por meio de iniciativas complementares, que podem incluir novos projetos de lei, ajustes normativos e outras medidas voltadas a carreiras que, neste primeiro momento, não foram diretamente alcançadas pela reestruturação”, afirmou em nota. 

O ministério também afirma que a proposição tem o objetivo de “enfrentar a excessiva fragmentação de carreiras, ampliar a eficiência administrativa e valorizar o servidor público” e avalia que a nova carreira transversal  não representa perda de especialização nem precarização das políticas públicas.

Entenda a nova carreira transversal

A nova carreira absorve 13 cargos e os consolida sob um único desenho institucional de analista técnico do Poder Executivo. São eles: administração e planejamento; administrador; administrador de empresas; analista de administração; analista técnico-administrativo; arquivista; bibliotecário; bibliotecário-documentalista; biblioteconomista; contador; técnico de nível superior; técnico em assuntos educacionais; e técnico em comunicação social.

Ela será organizada por especialidades, de acordo com as áreas de formação e atuação dos servidores, e terá sua gestão centralizada no MGI, responsável por definir parâmetros de lotação, movimentação e diretrizes gerais.

O texto prevê o enquadramento automático dos atuais servidores, exceto caso indiquem opção pelo contrário. Ficam preservados o tempo de contribuição e as vantagens pessoais já incorporadas. Eventuais perdas remuneratórias serão compensadas por vantagem pessoal nominalmente identificada, a ser absorvida ao longo da evolução na carreira. Concursos já autorizados permanecem válidos para ingresso na nova carreira, desde que haja compatibilidade entre as atribuições do cargo e a especialidade correspondente.

A remuneração do analista técnico do Executivo será composta por vencimento básico e pela Gratificação de Desempenho de Atividades Executivas (GDATE), vinculada ao desempenho individual e institucional, em sistema de pontos e avaliações periódicas, substituindo outras gratificações de desempenho, sem possibilidade de acumulação. O desenvolvimento na carreira se dará por progressões e promoções, condicionadas a tempo mínimo, avaliações satisfatórias e, no caso das promoções, à comprovação de experiência, capacitação e qualificação acadêmica, com progressão automática baseada apenas no tempo de exercício enquanto não houver regulamentação específica.

Reestruturação de carreiras ponto a ponto

Reconhecimento de Saberes e Competências (RSC) para técnico-administrativos em educação: Será estruturado em níveis, com percentuais progressivos de acréscimo remuneratório, aplicáveis apenas a servidores em atividade e condicionados a avaliação por comissões internas.

Reajuste e reestruturação remuneratória de médicos e médicos veterinários: O projeto de lei altera a tabela de vencimento básico dos cargos de Médico e Médico Veterinário, elevando os valores para as jornadas de 20 e 40 horas semanais em todos os padrões da carreira. O reajuste não muda atribuições nem cria novos cargos, mas reposiciona salários considerados defasados, com aumentos que variam, a depender da jornada e dos níveis. O impacto se estende a férias, 13º salário e aposentadorias futuras.

Criação do cargo de analista em atividades culturais: O projeto cria o cargo de Analista em Atividades Culturais, de nível superior, como parte da reestruturação das carreiras vinculadas à área cultural. A iniciativa reorganiza atribuições, requisitos de ingresso e estrutura remuneratória.

Reorganização do Plano Especial de Cargos da Cultura: O texto promove ajustes no Plano Especial de Cargos da Cultura, redefinindo enquadramentos, regras de desenvolvimento na carreira e critérios de progressão.

Regras para a carreira de perito federal territorial: O texto redefine a gestão da Carreira de Perito Federal Territorial, estabelecendo a lotação no Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, com exercício descentralizado conforme as necessidades da administração pública. A medida segue a lógica de centralização da governança de pessoas adotada em outras carreiras transversais.

Instituição da Gratificação Temporária de Execução e Apoio a Atividades Técnicas e Administrativas (GTATA): O projeto cria a GTATA, destinada a servidores que não integram carreiras estruturadas, mas desempenham atividades técnicas e administrativas essenciais. A gratificação tem caráter temporário, não se incorpora à aposentadoria ou pensões e busca reduzir desigualdades remuneratórias entre servidores que exercem funções semelhantes em estruturas distintas.

Medidas de gestão de pessoas: A proposta autoriza a realização de exames médico-periciais por meio de telemedicina ou análise documental. Também amplia e flexibiliza as regras de contratação por tempo determinado e expande o conceito de “necessidade temporária de excepcional interesse público”, permitindo esse tipo de vínculo para atividades técnicas, especializadas ou estratégicas que hoje não estão claramente enquadradas na legislação. Também há alongamento de prazos máximos e de possibilidades de prorrogação em casos específicos, além da simplificação dos processos seletivos, com maior espaço para análise curricular.

O projeto ajusta regras de regimes de turno e escala para permitir maior flexibilidade na organização da jornada em áreas consideradas essenciais ou sensíveis, como defesa civil, saúde, fiscalização e atividades operacionais contínuas. O texto autoriza escalas diferenciadas e regimes especiais de trabalho, inclusive com jornadas não convencionais, desde que respeitados os limites constitucionais.

Indenizações e exercício em localidades estratégicas: O texto amplia e reorganiza hipóteses de indenização para servidores em exercício em localidades de difícil provimento ou consideradas estratégicas, buscando melhorar a distribuição da força de trabalho no território nacional.

Regras para empregados anistiados pela Lei 8.878/1994:  O projeto disciplina o reposicionamento funcional e remuneratório dos empregados públicos exonerados pelo ex-presidente Fernando Collor entre 1990 e 1992 e anistiados, posteriormente pelo lei de 1994. Estabelece critérios objetivos de progressão e enquadramento e institui um Programa de Desligamento Incentivado específico para esse grupo, como forma de encerrar passivos históricos.

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