O debate público sobre a Lei 15.270 concentrou-se, até aqui, em questões operacionais: prazos para encerramento de balanços, janelas para deliberação de dividendos e a corrida de fim de ano que mobilizou empresas e profissionais. Essa discussão é legítima, mas tangencial.
O ponto central não está no calendário. Está na própria Constituição. A Lei 15.270 apresenta vícios tão profundos que comprometem a validade de seus dispositivos estruturantes, não apenas para lucros apurados até 2024, mas também para todo o regime que pretendeu instituir a partir de 2025.
A Constituição distingue com clareza o papel da lei ordinária e da lei complementar. Cabe à segunda definir normas gerais em matéria tributária, disciplinando tributos, bases de cálculo, créditos, compensações e restituições, como estabelece o artigo 146.
A Lei 15.270, embora ordinária, avançou exatamente sobre esse território reservado. Ela criou um modelo de tributação mínima no imposto de renda da pessoa física, instituiu um crédito vinculado à apuração da carga efetiva, estabeleceu um teto de tributação global e desenhou mecanismos de devolução para beneficiários no exterior. São estruturas que não poderiam ser veiculadas por lei ordinária, pois pertencem, na origem, à competência normativa da lei complementar.
O problema, porém, não se limita ao veículo normativo inadequado. A lei também deixou de definir os elementos essenciais das obrigações que criou. A quantificação do crédito decorrente da carga efetiva, peça central do regime, foi remetida ao regulamento. A lei não esclarece quais tributos compõem essa carga, qual o período de referência, como tratar regimes especiais, incentivos fiscais ou estruturas societárias complexas.
Esse vício atinge igualmente o regime de dividendos remetidos ao exterior, também reformulado pela Lei 15.270. A lei introduziu um modelo de crédito para o não residente baseado na integração entre a tributação da empresa e a retenção na fonte, mas não definiu em texto legal como esse crédito deve ser apurado nem quais parâmetros devem reger a limitação de carga global de 34% para a maioria dos setores da economia. Trata-se de um sistema novo, sofisticado e intrinsecamente complexo, mas cujos elementos centrais foram deixados para ato infralegal.
Essa delegação viola o artigo 150, inciso I, que exige que nenhum tributo seja instituído sem que seus elementos essenciais estejam definidos em lei. Viola também o artigo 5º, inciso II, que impede a imposição de obrigações sem fundamento legal completo e prévio.
Se o contribuinte depende de regulamento para conhecer a base de cálculo, e se a lei não entrega critérios mínimos de quantificação, a obrigação não existe nos termos constitucionais. Não se trata de lacuna técnica. Trata-se de nulidade. A Constituição não permite que a Administração Pública crie, por regulamento, aquilo que deveria ter sido definido pela lei. Quando isso ocorre, não há complementação legítima, mas ausência de fundamento de validade.
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Os vícios se encontram no mesmo ponto. A Lei 15.270 foi editada no instrumento normativo errado, estruturou regimes cuja disciplina exige lei complementar e delegou ao regulamento administrativo da própria Receita Federal a tarefa de completar a definição de créditos, bases de cálculo e critérios de incidência.
Esses defeitos contaminam o regime de tributação mínima, o cálculo da carga efetiva, a lógica de integração entre empresa e acionista e o recém-criado sistema de crédito para não residentes. São dispositivos que formam o núcleo da lei e que, por isso mesmo, não podem ser preservados por interpretação corretiva. Comprometem o edifício inteiro.
Se o Supremo Tribunal Federal mantiver sua jurisprudência consolidada sobre reserva de lei complementar, tipicidade e legalidade tributária, dificilmente a Lei 15.270 sobreviverá ao controle de constitucionalidade em seus aspectos centrais. O debate sobre prazos é compreensível, mas secundário. O verdadeiro problema está no fundamento da lei. Sua vigência formal não lhe confere validade material. E, sem validade constitucional, não há regime que se sustente.