Nos últimos dias, assistimos a repugnantes casos de feminicídios tentados e consumados que vitimaram mulheres em razão do sexo feminino. Catarina Kasten[1], Maria de Lourdes[2], Tainara Souza Santos[3], Allane Pedrotti[4], Layse Costa Pinheiro[5] e tantas outras cidadãs sofreram singularmente as consequências de uma cultura misógina que tem dificuldade de compreender a mulher como ser humano dotado de direitos, dignidade e igualdade.
O Poder Público falhou ao não prevenir tais delitos[6], dada sua recorrência como verdadeira epidemia social[7]. A sociedade, por sua vez, saiu às ruas para exigir respostas e políticas públicas efetivas em defesa das mulheres[8].
Penas mais duras não têm evitado feminicídios
A Lei 14.994/2024[9], que tornou o feminicídio um tipo penal autônomo e aumentou a pena para 20 a 40 anos de reclusão, não foi capaz de evitar que novas mulheres fossem brutalmente assassinadas. A ideia clássica de que penas duras possuem efeito preventivo simplesmente não se confirmou. Nenhum feminicida consulta o Código Penal antes de matar. O recrudescimento penal, sozinho, não tem se mostrado capaz de impedir a escalada da violência de gênero no país.
O limite do direito penal: a pena não alcança o pensamento
A pergunta que precisamos fazer é outra: o que faz com que cada vez mais homens cogitem matar mulheres? A cogitação é o primeiro estágio do iter criminis, mas é imune à repressão penal, justamente porque o Estado não pode punir o pensamento. Se queremos enfrentar o problema em sua raiz, precisamos agir antes mesmo que a violência se torne ato.
Misoginia digital: onde nasce o crime antes do crime
E aqui reside a questão essencial: onde nasce, hoje, o feminicídio?
Nas redes sociais, ambiente no qual discursos de ódio, misoginia e controle sobre os corpos e a autonomia feminina se expandem com velocidade e capilaridade inéditas[10]. É nas redes sociais em que pessoas da subcultura masculinista e “red pill” propagam, sem nenhuma sanção e com a conivência dos provedores, explanações de ódio contra as mulheres e discursos misóginos.
Discursos que, quando internalizados pelo indivíduo, tornam “verossímil”, em última instância, a possibilidade mental de se praticar a violência contra as mulheres. Os algoritmos, orientados pelo lucro e pelo engajamento, impulsionam mensagens que intensificam o ódio por meio de recompensas simbólicas: curtidas, seguidores, pertencimento ao grupo. O discurso se radicaliza, a cogitação passa a parecer plausível. E da fase interna (cogitação) para o início da fase externa do iter criminis, como se sabe, basta uma ruptura emocional, um ato.
A isso se soma a apropriação distorcida do discurso da liberdade de expressão, frequentemente mobilizado para justificar falas discriminatórias, apesar do limite extremamente tênue entre opinião e violência. Essa guinada não afeta apenas o debate político, mas enfraquece a contenção de temas sensíveis como exploração de menores, violência e, sobretudo, ataques contra mulheres, impactando diretamente o ecossistema digital global, que se orienta pelo comportamento de gigantes do setor. No fim, reforça-se a lógica de reprodução do ódio e dificultando qualquer estratégia estatal de prevenção ao feminicídio[11].
O papel do STF: regulação como proteção da vida
Diante desse cenário, o julgamento do Supremo Tribunal Federal em 2025 representa um ponto de inflexão. Ao declarar parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, a corte reconheceu que o modelo anterior de responsabilidade, baseado exclusivamente em ordem judicial específica, já não respondia aos desafios impostos pela economia digital, nem protegia de maneira adequada os direitos fundamentais.
O tribunal estabeleceu novos parâmetros, como a responsabilização das plataformas por falha sistêmica na remoção de conteúdos graves; dever de retirada imediata de materiais ilícitos; eliminação de réplicas de conteúdos já reconhecidos como ofensivos mediante simples notificação; e implementação de políticas internas de moderação, transparência e devido processo. Medidas que sinalizam, de modo claro, que a autorregulação voluntária das plataformas é insuficiente e que a proteção da dignidade humana das mulheres exige regulação estatal firme e contínua[12].
A urgência de políticas públicas antes do primeiro golpe
Regular as redes sociais não é apenas uma medida de governança tecnológica, mas uma estratégia indispensável de prevenção da violência letal contra as mulheres. Somente assim poderemos pensar em diminuir não apenas a prática do feminicídio, mas a própria ideia de que ele é concebível.
O caminho percorrido demonstra que o recrudescimento penal, por mais simbólico que seja, não tem sido capaz de impedir a escalada do feminicídio no país. A pena não alcança a fase da cogitação e, portanto, não impede que cada vez mais homens idealizem a morte de mulheres como resposta a frustrações afetivas, inseguranças ou sentimentos de posse.
Se o objetivo é reduzir essa probabilidade, a intervenção estatal precisa se deslocar para antes do ato e incidir sobre o ambiente que torna essa violência concebível. E esse ambiente, hoje, é moldado especialmente pelas redes sociais, que funcionam como aceleradores de misoginia. Sem a regulação efetiva das plataformas, não há política pública capaz de impedir que esses discursos alimentem a fase interna do delito.
Se já sabemos que a violência nasce antes do ato, o que ainda nos impede de transformar o ambiente que a produz?
[1] https://www.mpsc.mp.br/web/guest/w/noticia/den%C3%BAncia-do-mpsc-contra-o-acusado-de-crime-b%C3%A1rbaro-em-trilha-em-florian%C3%B3polis%C2%A0%C3%A9-recebida-pela-justi%C3%A7a
[2]https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2025/12/07/facada-incendio-e-fuga-o-que-se-sabe-sobre-o-feminicidio-contra-uma-cabo-do-exercito-no-df.ghtml
[3]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/12/05/mulher-atropelada-e-arrastada-segue-em-coma-induzido-no-hospital-das-clinicas-continua-lutando-pela-vida-diz-irmao.ghtml
[4]https://www.iffarroupilha.edu.br/ultimas-noticias/item/43978-nota-oficial-homenagem-a-allane-pedrotti-e-layse-pinheiro,-v%C3%ADtimas-de-feminic%C3%ADdio-no-cefet-rj
[5]https://www.iffarroupilha.edu.br/ultimas-noticias/item/43978-nota-oficial-homenagem-a-allane-pedrotti-e-layse-pinheiro,-v%C3%ADtimas-de-feminic%C3%ADdio-no-cefet-rj
[6] Em 2024, 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil – indigesto recorde da série histórica: https://www.otempo.com.br/cidades/2025/12/7/familiares-de-vitimas-pedem-justica-em-ato-contra-feminicidio-em-bh
[7]https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2025/12/brasil-vive-epidemia-de-violencia-de-genero-diz-pesquisadora.shtml
[8]https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/12/07/protesto-contra-feminicidio-reune-manifestantes-na-avenida-paulista-em-sp.ghtml
[9] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/l14994.htm
[10] Benício de Sá, Thaynara; CAETANO, Luís Miguel Dias. Percepções do Feminicídio nas redes sociais: o papel da Gestão Pública na conscientização do problema. Disponível em: https://repositorio.unilab.edu.br/jspui/bitstream/123456789/4830/1/Thaynara%20Ben%c3%adcio%20de%20S%c3%a1.pdf. Acesso em 8 dez. 2025. p. 4.
[11] BATISTA, Marianne. Reduzir moderação de conteúdo online tem impactos muito além da moderação. In: JOTA, em 9 jan. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reduzir-moderacao-de-conteudo-online-tem-impactos-muito-alem-de-desinformacao. Acesso em: 8 dez. 2025.
[12] STF define parâmetros para responsabilização de plataformas por conteúdos de terceiros, em 26 jun. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-define-parametros-para-responsabilizacao-de-plataformas-por-conteudos-de-terceiros/. Acesso em: 8 dez. 2025.