Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) formaram maioria nesta quarta-feira (17/12) para derrubar a tese do Marco Temporal das Terras Indígenas imposta pela Lei 14.701/2023. A norma instituiu a data de 1988 como referência de ocupação para o direito à demarcação de terras por povos indígenas.
O julgamento começou na segunda-feira (15/12) em plenário virtual e tem previsão de término na quinta-feira (18/12). A discussão se dá em meio a mais uma queda de braço entre Congresso e Supremo sobre o tema – na semana passada, após a Corte iniciar o julgamento da constitucionalidade da lei, o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 48/2023) sobre o mesmo assunto. O texto ainda precisa passar pela Câmara.
Já votaram o relator, Gilmar Mendes, e os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. Ainda faltam os votos de Nunes Marques, Edson Fachin e André Mendonça. Os ministros que já votaram acompanharam Mendes, que manteve o entendimento firmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo próprio Supremo no tema. Na avaliação de Mendes, a instituição de uma data não é capaz de resolver os conflitos territoriais brasileiros nem assegurar segurança jurídica.
Em seu voto, Mendes também fixa prazo de 10 anos para a União concluir processos demarcatórios, permite exploração econômica nas terras indígenas e assegura ao posseiro a permanência na área até o pagamento das indenizações devidas.
Contudo, alguns ministros fizeram ressalvas, como o ministro Flávio Dino, que defende restringir mais a exploração econômica em terras indígenas e expandir o prazo para a União apresentar um plano de demarcação, entre outros pontos. Toffoli e Zanin acompanharam Dino em parte.
Prazo para demarcação
O relator, ministro Gilmar Mendes, propôs a fixação de prazo de dez anos para que a União conclua os procedimentos demarcatórios pendentes, como forma de sanar omissão e demora de mais de 30 anos. De acordo com dados trazidos no voto a partir de consultas à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), são 231 processos administrativos em curso para a demarcação, ou seja, sem decreto presidencial homologatório. Desses, 158 são pedidos de demarcação.
Ficam mantidos os dispositivos da Lei 14.701/2023 que asseguram ao proprietário ou possuidor a permanência na área objeto de demarcação até o pagamento das indenizações devidas. O voto também estabelece que são consideradas benfeitorias de boa-fé aquelas realizadas antes da publicação da portaria declaratória do Ministério da Justiça. O ministro recordou que, no Tema 1.031, o STF reconheceu o direito de retenção do imóvel até a quitação das indenizações pelas benfeitorias.
O relator entendeu ser suficiente a gravação em áudio como prova para a demarcação. O ministro ainda fixou que a exigência não se aplica a laudos antropológicos concluídos e entregues à Funai antes da entrada em vigor da lei.
“É cediço que todo o processo de ocupação territorial brasileiro, desde a chegada dos portugueses em 1500, é permeado dessa vergonhosa forma de apropriação do território inicial e integralmente indígena, na maioria das vezes realizada, historicamente, por meio de violência, intimidação e mortes. Essa realidade – dura e nefasta – não pode ser tolerada e repetida hodiernamente”, escreveu Mendes.
“Mas, a pretexto de promover uma reparação às comunidades tradicionais, não se pode desconsiderar o vetor de segurança jurídica presente em nossa sociedade democrática contemporânea, até para que seja preservado o direito à propriedade e à posse privadas”, acrescentou.
Atividades econômicas
No voto, Mendes mantém a autorização de atividades econômicas em terras indígenas pela própria comunidade, conforme prevê a Lei 14.701/2023. Contudo, os contratos devem seguir parâmetros como o benefício coletivo, manutenção da posse direta pelos indígenas, aprovação pela comunidade e comunicação à Funai no prazo de 30 dias. Em caso de irregularidades na celebração ou execução, os órgãos de fiscalização poderão requerer à Justiça Federal a adoção de ajustes ou a rescisão contratual.
Entre as atividades possíveis está a exploração do turismo, desde que os benefícios alcancem toda a coletividade e que a posse da terra seja preservada. A exploração mineral foi retirada da proposta feita inicialmente pelo ministro Gilmar Mendes e a questão deve ser resolvida em ações que estão sob a relatoria do ministro Flávio Dino.
Dessa forma, atividades econômicas podem ser exercidas pelos próprios indígenas, de acordo com seus usos, costumes e tradições, sendo admitida a celebração de contratos com não indígenas, desde que respeitada a autodeterminação das comunidades, nos termos da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“A imposição de marco temporal pretérito e distante no tempo (5/10/1988), de forma retroativa para quem não possui cultura de resguardo de documentação formal, não guarda proporcionalidade com o fim almejado: conferir segurança jurídica. Isso porque, tal escolha legislativa esvazia desarrazoadamente o comando constitucional do art. 231 da Constituição Federal, introduzindo praticamente prova impossível para quem tinha clara deficiência técnico-jurídica de defesa de seus interesses jurídicos àquela época (antes de 5/10/1988)”, escreveu o ministro Mendes.
Conciliação
O julgamento se dá após tentativa de conciliação sobre o tema no Supremo, em que foi apresentado um documento sem a derrubada do marco, mas com pontos de consenso como a possibilidade de exploração econômica em terras indígenas, a necessidade de aprimorar os processos de demarcação – inclusive com mais publicidade – e o pagamento de indenização aos ocupantes não indígenas.
Mendes sugere, inclusive, que os aprimoramentos feitos durante a mesa de negociação sejam utilizados, tanto que votou pela homologação da proposta de aprimoramento legislativo elaborada durante a conciliação feita entre os anos de 2024 e 2025.
Contudo, a negociação acabou prejudicada com a saída de representações indígenas como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Os grupos indígenas pediram ao ministro Gilmar Mendes que desse uma liminar suspendendo a validade da lei e ele não o fez. Assim, na visão desses grupos, eles estavam em situação de desigualdade nas negociações. Ainda, as entidades argumentam que os direitos indígenas são indisponíveis, assim, eles não podem ser retirados ou negociados.