No filme argentino Belén, uma mulher entra em um hospital com dores abdominais, vai ao banheiro, volta para o leito sangrando e é presa pelo crime de aborto. O órgão de acusação quer prisão perpétua. Uma advogada ouve a história no corredor do Fórum e se oferece para fazer a defesa da mulher. A mulher acusada não entende como pode ter feito um aborto se sequer sabia que estava grávida. O acesso aos autos não é concedido à advogada, ela não pode defender Belén.
Na história brutal contada nesse filme, a ameaça de execução não faz sentido. Em um flerte kafkiano, o processo judicial não está acessível, não se conhece a acusação e as provas e a defesa surge de desconhecidas, ou melhor, voluntárias. Só a punição é conhecida. O processo não é um conjunto de atos e procedimentos do Estado, é um segredo.
Os profissionais da saúde inventaram um crime inexistente e os servidores da justiça não se ocuparam em investigá-lo. Executaram o que vamos chamar aqui de “ordem de conservação”, afinal, não interessa se foi Belén que fez um aborto, restos fetais foram encontrados, uma mãe matou um “bebê” e, portanto, alguma mulher deve ser punida.
Nos casos de feminicídios, em que alguém mata uma mulher por sua condição de mulher, a definição da autoria não é difícil. Com exceção dos crimes que acontecem no campo da política, dos feminicídios não íntimos, não é difícil identificar os autores: são sempre os homens-circundantes da mulher vítima, aqueles portadores da “permissão de conservação”, uma licença para manter a sociedade funcionando como sempre funcionou.
Os homens nomeados nas notícias e denunciados nos papéis são responsáveis pelos feminicídios, mas estão apenas no grupo dos portadores da “permissão de conservação”. Como a permissão para dirigir ou o porte de arma de fogo, os autores desses crimes são responsáveis pelo crime, já que escolheram livremente fazer uso dessa licença, mas não são eles que estão no comando.
Boa parte dos homens-circundantes podem não saber quem assinou o documento de permissão para que eles façam o necessário para conservar as relações naturais entre homens e mulheres. Não sabem não porque sejam ignorantes ou tenham sido enganados, mas porque confiam que a autorização que carregam é justa. Embora saibam (e todo mundo sabe) que não se pode agredir, humilhar, matar outra pessoa, estão tranquilos com sua condição de executor porque a licença, a autorização que carregam, não é para matar, a licença é para conservar, manter, proteger.
Quando o assassinato advém de atos de conservação da sua posição de homem-circundante, quando acaba sendo necessário matar, o executor sabe que está errado, mas confia que há algo de natural, de justo naquele ato. A natureza das coisas, ele finge acreditar, é mais forte que a lei.
Como homem, ele precisa conservar a natureza das coisas. As pessoas com quem convive compreendem e reforçam sua posição quando um homem perde a cabeça “por causa de uma mulher”. É fácil se identificar com ele, é aceitável perdoá-lo, não era para terminar em morte, mas as coisas são como são.
Engana-se quem acha que esse é um homem do passado, ele não se considera apenas o chefe de família que precisa proteger essa instituição. Isso não faz tanto sentido sem a mulher. Uma família só existe, para a sociedade se conserve, se existir um homem e uma mulher. Além disso, há também os homens que se acham letrados em relações de gênero, esses querem licença-paternidade.
Mulheres só sofrem violência quando se colocam em posição de risco, mulheres são assassinadas quando querem escolher novos parceiros, quando não querem fazer sexo com o companheiro, quando querem controlar sua reprodução. Morrem também quando querem mudar de cidade, de roupa, de emprego ou quando querem, simplesmente, mudar de ideia. O feminicídio é isso, o exercício da licença de conservação para que as mulheres não façam o que não nasceram para fazer: escolhas. Os homens-circundantes feminicidas conhecem a lei, mas, como dito, o assassinato é justo. E justiça e lei não são a mesma coisa.
Essa compreensão dos homens-circundantes sobre a justiça do feminicídio é também compartilhada por homens e mulheres que não circundam diretamente a mulher. Várias pesquisas já demonstraram a inação das pessoas quando tomam conhecimento ou até testemunham violências contra as mulheres. Isso que a sociedade confirma, não é sobre a família, é sobre a mulher.
A sequência de feminicídios de 2025 vem de homens-circundantes cumprindo uma ordem cada vez mais rígida de conservação das relações naturalizadas de gênero. O que é novo é um ecossistema sócio jurídico em que há leis específicas que responsabilizam os feminicidas, ao mesmo tempo em que o conservadorismo deixa de ser sobre a família e passa a ser, explicitamente, sobre gênero.
A licença de conservação virou ordem porque o tempo se estreitou. Não dá para esperar muito, a ordem precisa ser cumprida a qualquer custo e rapidamente. O senso de justiça do conservadorismo precisa desrespeitar a lei porque as mulheres estão conversando entre si, aprovando leis, formulando políticas e não há sinais de que vão mudar de ideia.
O conservadorismo atual não é mais, nem no discurso, sobre a manutenção da família, é sobre a repressão das mulheres. Com medo de que as mulheres sobrevivam ao racismo, à pobreza, ao trabalho do cuidado, à exploração sexual, à prisão, ao estupro, o conservadorismo saiu do armário e vocalizou sua perversidade: as leis não importam, é justo controlar uma mulher. O feminicídio é apenas consequência.