Pode-se dizer que a cadeira de ministro do STF é uma das mais cobiçadas cadeiras da República. A aposentadoria de um do ministro da Suprema Corte movimenta os bastidores do Poder Executivo e do Poder Legislativo: quem será o indicado, ou a indicada, a ocupar a cadeira.
Integrar o STF costuma ser apresentado como o auge da carreira jurídica. Mas, atualmente, a cadeira de ministro é um híbrido de vidraça e para-raios. Sentar ali significa ter poder, responsabilidade e desgaste numa proporção que poucos cargos públicos conhecem.
O texto faz uma breve reflexão sobre a essa tão cobiçada cadeira por meio de cinco “Pês”: prestígio, problemas, preocupações, percalços e precauções.
Prestígio
Do ponto de vista simbólico, ser ministro do STF é ocupar uma das posições mais altas da República. Não se trata apenas de remuneração ou tratamento protocolar: é a possibilidade de influenciar o rumo de políticas públicas, direitos fundamentais e da própria interpretação da Constituição.
Quem ingressa no Supremo entra para um “círculo” de 11 cadeiras que atravessam governos, crises e modas ideológicas. Ministros viram personagens de livro didático, nomes de referência em faculdades de Direito, alvos de citações em votos e também em panfletos de rua e hashtags. A toga do STF confere a última palavra sobre temas que vão da intimidade das pessoas às grandes escolhas de Estado.
Mas esse prestígio deixou de ser silencioso. A figura do ministro circula em telejornais, podcasts, colunas de opinião e, sobretudo, nas redes sociais. É celebrada e, também, atacada. O prestígio vem acompanhado de um nível de exposição que nenhum constituinte de 1988 teria imaginado.
Problemas
Junto com o brilho, chegam os problemas. Não apenas os institucionais, mas os muito concretos, que batem na rotina do próprio ministro.
O primeiro é o problema da sobrecarga permanente. A pauta do STF é uma máquina que não desliga: milhares de processos, decisões urgentes, ações de grande impacto misturadas a casos individuais que também cobram atenção. O trabalho não cessa: votos a liberar, processos a relatar, liminar a analisar.
O segundo é o problema da incompreensão pública. Por mais bem fundamentada que seja uma decisão, ela será muitas vezes lida por manchetes, cortes de vídeo e frases descontextualizadas. O ministro se vê diante de um dilema permanente: sabe que precisa decidir tecnicamente, mas também sabe que será julgado por uma plateia que não necessariamente leu o processo. Conviver com a ideia de que parte da sociedade não o compreenderá é um problema real.
Há, ainda, o problema da suspeita constante. Qualquer voto, encontro, gesto ou foto pode ser interpretado como prova de parcialidade. Pedidos de suspeição, teorias conspiratórias e narrativas de captura passam a fazer parte do cotidiano. Mesmo quando arquivadas, essas acusações deixam marcas na biografia e desgastam o dia a dia.
Outro problema é o da vida pessoal comprimida. A cadeira invade a casa. Rotina familiar revirada, filhos expostos, cônjuge alvo de comentários, fim de semana interrompido por crise institucional. O cargo não desliga à noite nem no recesso. O ministro precisa aprender a conviver com a sensação de estar sempre devendo: ao tribunal, à família, a si mesmo.
Por fim, há o problema da solidão decisória. Em muitas situações, especialmente nas mais sensíveis, a responsabilidade concreta da caneta é intransferível. Por mais que existam assessores, colegas e precedentes, o ato final é individual. Saber que uma assinatura pode interferir em eleições, políticas públicas ou na vida de milhares de pessoas é um problema que não aparece no Diário Oficial, mas pesa no travesseiro.
Preocupações
Se os problemas são visíveis, o P de preocupações é mais íntimo, quase um monólogo interno que acompanha o ministro ao longo de toda a carreira.
A primeira preocupação é com o legado. Poucos cargos obrigam alguém a conviver diariamente com a pergunta: “Como a história vai ler o que estou fazendo?”. Cada voto, cada liminar, cada posição em casos de grande repercussão é um tijolo num prédio que só ficará pronto quando ele já não estiver mais lá. A inquietação constante é equilibrar o curto prazo das crises políticas com o longo prazo da interpretação do agir do ministro.
Uma segunda preocupação é a da coerência ao longo do tempo. Um ministro pode atravessar décadas de mudanças sociais, tecnológicas e políticas. A tentação de se adaptar ao clima do momento é grande; a exigência de manter uma linha de princípios também. Ele sabe que o próprio passado será sempre trazido de volta: votos antigos, entrevistas, livros, pareceres. A pergunta silenciosa é: “Vou conseguir olhar para a minha trajetória e reconhecer uma espinha dorsal, e não um zigue-zague conveniente?”.
Há ainda a preocupação com a linha tênue entre juiz e ator político. O ministro sabe que qualquer movimento é lido politicamente: quem recebe em audiência, em que evento aparece, como formula uma frase, quando pauta um processo. A angústia permanente é não ser capturado pela lógica da torcida, nem se deixar usar por governos, partidos, grupos econômicos ou corporações. Em muitos momentos, a pergunta interna é: “Estou decidindo porque acredito que é o certo ou porque é o mais confortável?”.
Outra preocupação recorrente é a da legitimidade da própria instituição. O ministro percebe que sua biografia está colada à imagem do STF: uma crise de confiança na Corte respinga nele; um excesso de protagonismo individual pode desgastar o tribunal inteiro. Ao longo da carreira, vê-se dividido entre falar para “defender o Supremo” e se calar para “preservar o Supremo”. Essa tensão acompanha cada entrevista, cada palestra, cada silêncio calculado.
Por fim, existe uma preocupação íntima, quase inconfessável: a de não se perder de si mesmo. Anos de poder, deferência e exposição podem alimentar vaidades, ressentimentos e cegueiras. O ministro sabe que, por trás da retórica dos princípios, há um ser humano sujeito a elogios, ataques e seduções. A pergunta mais difícil, que volta nas noites insones, é: “Ainda sou o mesmo juiz que eu dizia que seria quando sonhava com essa cadeira?”.
Percalços
O quarto P é o de percalços. Eles começam antes da posse.
A sabatina no Senado, que deveria ser um exame rigoroso de preparo técnico e visão institucional, frequentemente se transforma em palco de recados, testes de fidelidade e discursos para bases eleitorais. Pergunta-se menos sobre a Constituição e mais sobre alinhamento político. O indicado já experimenta, ali, a sensação de ser menos sujeito e mais alvo.
Uma vez aprovado, o ministro passa a conviver com percalços de toda ordem:
Pedidos de impeachment usados como instrumento de intimidação;
Ameaças virtuais, campanhas de difamação, hostilidade em aeroportos e restaurantes;
Tentativas recorrentes de reduzir competências da Corte sempre que a decisão desagrada algum grupo influente.
Somam-se a isso os percalços internos: divergências públicas entre colegas, vazamentos seletivos, dentre outras situações. A vida no plenário nem sempre é solene; muitas vezes é atravessada por ruídos, egos e conflitos de visão.
E há a solidão das decisões impopulares. Em vários casos, cumprir a Constituição significa votar contra a opinião dominante nas redes, contra o clamor das ruas ou contra o interesse do governo da vez. Nessas horas, a cadeira pesa mais do que a toga.
Precauções
Por fim, o P de Precauções, preocupações.
A primeira precaução é quanto a própria segurança. A vida cotidiana é redesenhada: trajetos, rotina, participação em eventos, exposição de familiares. A figura do ministro deixa de ser apenas um jurista e passa a se um símbolo. Mas símbolos em tempos polarizados viram alvos. O Supremo exige de seu integrante não apenas erudição, mas protocolos de proteção dignos de quem vive sob risco permanente.
A segunda é a precaução com a exposição pública e digital. Cada frase, gesto ou aparição em público é potencial print, corte de vídeo ou munição para narrativas futuras. Uma fala descontextualizada numa palestra, uma foto num evento social, comentários informais podem ser recuperados anos depois para questionar imparcialidade ou insinuar favoritismo. O ministro acaba por viver sob a lógica da memória infinita da internet, e isso cobra um preço em espontaneidade e liberdade de circulação.
A terceira é a precaução nas relações pessoais e profissionais. Convites, jantares, encontros e selfies deixam de ser simples atos de cordialidade para se tornarem possíveis fontes de suspeita. Quem ocupa a cadeira é levado a restringir círculos, controlar aproximações, dizer “não” a situações aparentemente inocentes. Manter vínculos humanos sem comprometer a imagem de imparcialidade vira exercício diário de autocontenção.
Por fim, há a precaução emocional. Viver anos sob fogo cruzado, ora retratado como herói, ora como vilão, desgasta qualquer um. Estabelecer alguma distância das redes sociais e preservar rotinas de estudo e reflexão que o protejam da tentação de virar celebridade togada. Se se deixa capturar pela vaidade dos holofotes, a toga perde densidade; se se isola completamente, o tribunal perde sensibilidade social.
Em resumo: para ocupar essa cadeira, hoje, não basta ser grande jurista. É necessário ser também gestor de risco, administrador da própria imagem e cuidador de si e dos seus.
Entre o fascínio e o alerta
Os cinco “Pês” (prestígio, problemas, preocupações, percalços e precauções) mostram que a cadeira de ministro do STF está longe de ser apenas prêmio de fim de carreira ou gesto de amizade presidencial. É um posto de alta tensão institucional e biográfica.
O debate sobre cada nova vaga não deveria se limitar à velha pergunta “de que lado ele é? ” ou “de quem ele é amigo? ”, mas à questão mais incômoda: que Supremo estamos construindo para os próximos 30 anos?
Um Supremo que seja guarda da Constituição, e não ator partidário; que seja plural, e não espelho embaçado de uma mesma elite; que proteja direitos, mas também compreenda o impacto real de suas decisões; e que, sobretudo, tenha ministros capazes de honrar a cadeira sem perder a medida humana de quem nela se senta – e de quem é por ela julgado.
A toga brilha. Mas, num país como o nosso, talvez o sinal mais saudável de maturidade democrática seja reconhecer que, por trás desse brilho, há pessoas sujeitas a pressões, limites e fragilidades. Entender os cinco “Pês” dessa cadeira diz muito não apenas sobre o nosso Judiciário, mas sobre o estado da nossa sociedade.