A reindustrialização do Brasil tornou-se um mantra necessário no governo e no setor produtivo. Há consenso de que o país não pode prescindir de uma indústria forte. No entanto, na passagem da teoria para a prática, o governo federal enfrenta uma encruzilhada que definirá a eficácia da Nova Indústria Brasil: a capacidade de distinguir o fomento estratégico, que gera inovação e produtividade, do protecionismo anacrônico, que pode blindar ineficiências e transferir renda da sociedade para monopólios.
O debate sobre a elevação tarifária e medidas antidumping para o aço — especificamente as folhas metálicas para embalagens — é o laboratório perfeito dessa tensão. O que está em jogo transcende uma disputa comercial ou setorial ; o tema toca na espinha dorsal da formação de preços e na eficiência alocativa de recursos, com impacto direto em empregos e no consumidor.
De um lado, o pleito por barreiras tarifárias para o aço laminado para embalagens, fabricado por apenas uma empresa no Brasil. Do outro, a sobrevivência de toda uma cadeia de transformação que depende desse insumo para fabricar embalagens de alimentos e de outros produtos de forma segura. A equação, quando despida de retórica e submetida ao rigor da Análise de Interesse Público, revela uma assimetria brutal: o custo social de impor barreiras à importação supera, em larga escala, qualquer benefício próprio do monopólio.
A defesa comercial existe para corrigir distorções como o dumping, mas inclui uma trava de segurança essencial: o Interesse Público. Este mecanismo prevê que não convém a aplicação da medida se o dano à economia nacional for desproporcional. É exatamente o caso. Dados recentes das consultorias LCA e Tendências iluminam essa distorção.
Estima-se que o endurecimento do protecionismo neste setor causará um prejuízo acumulado de R$ 6,57 bilhões aos consumidores ao longo de cinco anos. Mais grave é o “peso morto” na economia real. As projeções indicam recuo de quase meio bilhão de reais no PIB e risco de extinção de cerca de 4,7 mil postos de trabalho só na cadeia de latas de aço. Estamos falando de sacrificar empregos na indústria de transformação brasileira — que agrega valor e tecnologia — para preservar margens na indústria de base, que já opera protegida por barreiras naturais e logísticas.
O cerne da questão reside na estrutura de mercado, ponto que as autoridades não devem ignorar. O Brasil convive com um monopólio privado no fornecimento de folhas de aço, que não realiza investimentos suficientes no setor. Quando o fornecedor único nacional pleiteia barreiras contra o aço importado — vindo de origens com tecnologia de ponta, gerando muito mais variedades em termos de formato e propriedades de vedação alimentar e química —, ele não pede isonomia competitiva, mas a chancela estatal para repassar, inclusive, ineficiências operacionais ao mercado, sem risco de contestação.
Por que não investir e inovar? A realidade do chão de fábrica desmonta a narrativa de que importações são “predatórias”. A fabricante nacional segue detendo mais de 60% do mercado nacional. A indústria de embalagens de aço só importa porque precisa. O setor enfrenta rotineiramente problemas de qualidade e especificações no insumo doméstico que dificilmente são avaliadas e consideradas pelo monopólio. Somam-se a isso atrasos que desorganizam a produção de indústrias sazonais. Obrigar a transformação a ficar refém de um fornecedor único, que opera aquém de padrões globais, é condenar o produto brasileiro à obsolescência.
As indústrias não se submeteram à imposição. Estão pagando as sobretaxas, já que o produto do monopólio não as atende. Evidentemente o aumento nos custos acaba repassado. Há uma falácia econômica vendida em Brasília: a de que proteger a usina de folhas de aço equivale a proteger a soberania industrial. É o oposto. A folha de aço é meio, não fim.
Se a folha de aço é cara, ou não atende aos requisitos de conformidade exigidos por diversas indústrias alimentícias e de bebidas, produtos essenciais como lata de sardinha, de milho, de tinta e o aerossol do inseticida encarecem – seja por repasse direto na etiqueta, seja pela redução no tamanho das embalagens. O resultado é inflação de custos, o pior imposto regressivo.
Estudos apontam impacto inflacionário direto de até 6,3% em itens enlatados da cesta básica caso as barreiras subam. Num momento em que o Banco Central luta para ancorar expectativas e a Fazenda busca o equilíbrio fiscal, importar inflação via tarifa é contrassenso. É uma medida que joga contra o esforço fiscal e corrói o poder de compra da população, apenas para garantir reserva de mercado a um player estagnado em inovação e competitividade.
O Brasil precisa de uma siderurgia forte. A força industrial se mede pela capacidade de competir e inovar, não pela altura dos muros alfandegários. A defesa comercial é legítima, mas não pode ser aproveitada para servir de escudo contra a eficiência alheia (rent-seeking).
A indústria de embalagens, que gera emprego e garante a segurança alimentar, não pode ser a variável de ajuste. A decisão sobre as tarifas dirá que mercado o Brasil quer: um que privilegia a competitividade sistêmica e o bem-estar social, ou um extrativista que sacrifica o todo para garantir a renda monopolista.