Diante de tudo que vem sendo noticiado no Brasil, questiona-se se juízes constitucionais, pelo compromisso que assumem de fidelidade apenas à Constituição, conseguem separar o exercício da magistratura da torcida fervorosa por seus times de futebol. Um juiz constitucional deve ter a Constituição como hábito mental e moral exclusivo e, assim, proteger a magistratura constitucional de fidelidades impróprias ou, no mínimo, de pavonismos constitucionais[1].
A independência dos magistrados e das magistradas é, ao mesmo tempo, como faces da mesma moeda, a qualidade mais frágil e mais importante de uma Corte Constitucional. Para possibilitar que a magistratura exerça suas funções com independência, o sistema jurídico ergue muralhas ao seu redor que se consubstanciam em direitos, prerrogativas e limitações. Não basta, no entanto, que juízas e juízes constitucionais – e assim, também, ministras e ministros do STF –, sejam independentes. Devem, também, assim parecerem.
Um Código de Ética é necessário no Supremo Tribunal Federal, assim como já o possuem os Tribunais Constitucionais de Estados Unidos, Alemanha e França. Não por presunção de corrupção ou desvios, mas porque o cumprimento da fidelidade constitucional se manifesta através do bom exercício da função pública e também do modo como agem na vida privada.
Não se trata de buscar excessos de moralismos institucionais, mas sim de se blindar a autoridade moral e a legitimidade da corte de questionamentos a respeito de deslocamentos aéreos, paixões futebolísticas e contratos de honorários advocatícios parentais.
Ao agirem com aparente quebra da independência na esfera privada, toda a imagem do Tribunal Constitucional é afetada, pois a colegialidade também é uma qualidade essencial que desmorona com falhas individuais. Fraquezas intelectuais pontuais e diferenças de personalidade, na soma, podem ser a fortaleza da colegialidade, sendo a diversidade elemento de perpetuação da espécie.
Contudo, a infidelidade constitucional não pode ser tolerada. A muralha que se ergue em torno de juízas e juízes constitucionais passa pela proibição de atividades político-partidárias, vedação ao exercício de determinadas atividades privadas e impossibilidade de ocupar determinados cargos ou funções.
No Brasil, o regime disciplinar dos magistrados e magistradas, sobretudo do STF, vem sendo objeto de debates acadêmicos e parlamentares desde a Reforma do Poder Judiciário de 1965, e desde então a chamada crise do Judiciário avança em ondas sobre a legitimação social das decisões judiciais, afetando não apenas a imagem das pessoas que ocupam esses cargos, mas a própria percepção de justiça da sociedade.
O Supremo Tribunal Federal, ainda sob a presidência da ministra Rosa Weber, perdeu mais uma oportunidade de avançar positivamente no tema ao reconhecer, por maioria, a inaplicabilidade do impedimento de atuação de seus integrantes nos processos de clientes cujos advogados e advogadas guardassem vínculos com membros da corte (artigo 144, inciso VIII, do CPC).
Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin e Rosa Weber na ADI 5953, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), julgada em agosto de 2023, de modo que a maioria dos ministros, após voto-vista do ministro Gilmar Mendes, não viu problema na atuação dos ministros nas causas em que as partes são representadas por advogados com vínculo de parentesco com membros da corte.
Não se nega a fundamentalidade do papel exercido pelo Judiciário brasileiro, sobretudo do STF, na defesa da democracia e no avanço dos diálogos institucionais dos poderes da República. Desde judiciaristas de primeira grandeza como Rui Barbosa e Pedro Lessa, que enxergaram no Judiciário a força motriz democrática de proteção dos direitos fundamentais, mesmo sob forte ataque do militarismo, até os ministros aposentados pelo AI-5 Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, há que se reconhecer que o Judiciário quebra a paralisia do realismo e cumpre a Constituição com galhardia em momentos de crises degenerativas constitucionais, fazendo prevalecer a autoridade moral, que exsurge do império do direito e das boas práticas jurídicas, sobre a violência e o arbítrio.
O Poder Judiciário, cujo regime disciplinar ainda se baseia precipuamente na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, de 1979, anterior, portanto, à Constituição de 1988, precisa enfrentar o assunto do regime ético e do código de conduta para integrantes do seu órgão de cúpula que, a despeito da mais alta importância, são servidoras e servidores públicos, submetidos aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, assim como todas as demais pessoas.
As Cortes Constitucionais da Alemanha, dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França já possuem algo similar a um Código de Conduta para seus ministros. Na Alemanha, onde o ministro Edson Fachin busca inspiração para adoção de um modelo de Código de Ética, a Corte Constitucional possui uma das maiores taxas de aprovação social entre instituições públicas.
Em congresso realizado em Milão em maio de 2007, reunindo juízes das Cortes Constitucionais de Israel (Aharon Barak), Itália (Gustavo Zagrebelsky), Espanha (Pedro Cruz Villalón) e França (Olivier Dutheillet de Lamothe), o ex-juiz da Corte Constitucional da Alemanha Dieter Grimm, após reafirmar o alto grau de prestígio, confiança e legitimidade do tribunal, relatou o caso que, na sua leitura como integrante da instituição, comprovou esse dado na prática.
Em 1995 o Tribunal Constitucional Alemão declarou a inconstitucionalidade de lei da Baviera que exigia que todas as escolas fundamentais tivessem um crucifixo em suas salas de aula, o que gerou revolta entre os bispos, até mesmo com protestos em frente ao prédio da corte pela comunidade católica.
Em conversa com seu então colega juiz Ernst-Wolfgang Bockenförde, houve o compartilhamento do receio de que o tribunal nunca mais voltasse a gozar da autoridade que tinha. Isso não demorou, segundo Grimm, três meses para acontecer, pois o país compartilha de um mesmo valor: o alto custo pessoal e institucional de desobedecer a Constituição, cuja guarda compete ao Tribunal Constitucional.[2]
[1] ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos: el Tribunal Constitucional y la política. Tradução de Manuel Martínez Neira. Madrid: Trotta, 2008.
[2] PASQUINO, Pasquale; RANDAZZO, Barbara. Come decidono le Corti Costituzionale (e altri Corti). How Constitutional Courts make decisions. Atti del Convegno Internazionale svoltosi a Milano, il 25-26 maggio 2007. Milano: Giuffrè, 2009.