“Talvez possamos resumir as diferenças entre um Estado de Direito e o Terceiro Reich da seguinte forma: no primeiro, o Judiciário controla o Executivo em prol da legalidade; no segundo, o Executivo subjuga o Judiciário em nome da conveniência política”[1]
Ernst Fraenkel. The Dual State
Nos últimos dias, medida cautelar parcialmente concedida pelo ministro Gilmar Mendes nas ADPFs 1259 e 1260/DF, que impugnam dispositivos da Lei 1.079/1950 concernentes ao impeachment de ministros do STF, causou grande alvoroço na mídia. Apesar de ser uma decisão longa e tecnicamente fundamentada, rapidamente apressadas opiniões trataram de atacar o ministro e a corte, em um modus operandi de deslegitimação do STF que têm sido colocado em prática nos últimos anos.
Não defendemos que o STF seja isento de críticas: pelo contrário, como qualquer outra instituição, o Supremo deve ser criticado quando erra e submetido ao constrangimento da esfera pública. Ocorre que é crucial compreendermos os limites institucionais da jurisdição constitucional para sabermos situar, dentro das balizas jurídicas, a crítica ao STF, para não a degenerarmos em discurso de ódio institucional.
O ponto é que, para além da crítica fundamentada e salutar para a democracia, o STF tem sido alvo de um discurso extremista que não tolera uma jurisdição constitucional contramajoritária. Perde-se de vista que, em uma democracia constitucional, em especial no desenho institucional de 1988, o Judiciário é a instituição responsável por interpretar as leis e declará-las contrárias ao direito (ou não recepcionadas pela Constituição) se assim o forem. Isso porque, nesse sistema político, o poder político está submetido ao direito. E quem aplica o direito é o Poder Judiciário. E isso é incômodo para quem quer exercer poder sem limites.
O que o impeachment de ministros do STF tem a ver com autoritarismo?
Bernd Rüthers nomeou a manifestação concreta desse incômodo, decorrente da ânsia pelo poder político, como uma hostilidade para com o direito. Uma vez que o direito impõe limites e procura impor racionalidade aos atos políticos, ideologias autocráticas[2] tendem a subverter a primazia do jurídico sobre político, definidora do constitucionalismo.
Por consequência, essa hostilidade se volta também àqueles que exercem a jurisdição constitucional e aplicam tais limites, o que se manifesta de forma muito clara com a espetacularização e banalização dos pedidos de impeachment de ministros do STF.
Tal banalização contribui para uma “fulanização” do próprio mecanismo de impeachment, que deixa de ser visto como um remédio excepcional a ser utilizado em casos gravíssimos para ser compreendido como um instrumento da barganha política ordinária. E o que não é menos grave: passa a ser utilizado como bandeira eleitoral, mobilizando discordâncias políticas da população e subvertendo a lógica contramajoritária de uma jurisdição constitucional minimamente funcional e necessariamente independente.
Vê-se que a epígrafe deste texto não foi em vão: Ernst Fraenkel notou com precisão que o funcionamento do regime autocrático nazista estava baseado em um Estado Dual. Em sua metade “técnica”, o exercício do poder obedecia a regras e procedimentos legais que tinham por finalidade garantir a observância de determinados limites e, portanto, a legitimidade estatal. Já na metade “política”, o Estado das Prerrogativas operava de forma arbitrária e caótica.
Para Fraenkel, tal dualidade era marcada por um desequilíbrio irremediável, que fazia com que a metade política adquirisse sempre primazia sobre a técnica.[3] Nesse cenário, o Estado das Prerrogativas tinha “jurisdição sob a jurisdição”, determinando seus próprios limites, à revelia do direito.[4] Por isso, o principal fator de distinção entre o Terceiro Reich e um Estado de Direito era a prevalência da conveniência política sobre a função jurisdicional.
E acrescentamos: não importa se a pretensão de subjugar o Judiciário venha do Executivo ou do Legislativo; o determinante é que a jurisdição seja estrangulada, de modo a fazer o político prevalecer sobre os limites jurídicos. Ou seja, a principal arma de um modo de fazer política autocrático é o cerceamento da independência do Poder Judiciário.
Nesse sentido, a existência de um procedimento legal de impeachment de ministros do STF, por si só, não é um elemento autoritário; trata-se, antes, de um mecanismo de controle comum em regimes constitucionais. Porém sua instrumentalização para intimidar ministros e, desse modo, colocar em xeque a independência da corte, isso sim é um movimento político tipicamente autocrático. Daí porque o modo como pode se dar um impeachment, isto é, o procedimento, estabelecido por uma legislação tão antiga, deve, sim, passar por um juízo de compatibilidade com a Constituição atual.
Assim, a Lei do Impeachment deve ser lida à luz da realidade brasileira contemporânea, marcada pela emergência de impulsos de populismo autoritário que transformaram o STF em bode expiatório dos problemas nacionais. Se a lei de 1950 — elaborada em contexto de forte predominância do Poder Executivo e permeada por um expressivo espírito antivarguista e parlamentarista[5] — refletia uma configuração institucional específica, sua leitura atual não pode ignorar que o desenho constitucional de 1988 atribui uma proposital centralidade ao STF que inexistia na primeira metade do século passado.
Hoje, o STF enfrenta um número muito maior de temas social e politicamente sensíveis, já que as possibilidades de acionar a jurisdição constitucional são muito mais amplas. Daí porque a proteção de um Poder cujos membros desempenham função contramajoritária a pressões sociais e políticas é muito mais relevante na atualidade[6], constituindo elemento indispensável à estabilidade democrática.
O caso das ADPFs 1259 e 1260: da cautelar ao “recuo” do ministro
As principais discussões mobilizadas nas ações constitucionais que provocaram a decisão monocrática dizem respeito a dispositivos da Lei 1.079/1950 que tratam sobre (i) a legitimidade ativa para oferecer denúncias de crimes de responsabilidade contra ministros do STF; (ii) o quórum para aprovação no Senado; (iii) redução salarial e de afastamento provisório com o recebimento de denúncia; e (iv) a (im)possibilidade de o conteúdo da decisão ser motivo para um pedido de impeachment.
Acerca de como o ministro Gilmar Mendes enfrentou cada um desses pontos na decisão proferida no dia 3, e as razões pelas quais se trata de uma interpretação constitucionalmente adequada, reportamo-nos ao texto publicado por Almir Megali Neto, Diogo Bacha e Silva, Alexandre Melo Franco Bahia, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Lenio Luiz Streck neste JOTA[7].
Apenas acrescentamos que tanto a suspensão de dispositivos como a técnica de interpretação conforme à Constituição foi utilizada para atribuir à legislação defasada uma maior coerência à Constituição de 1988, que, por exemplo, faz uma diferenciação muito clara entre o quórum simples ou qualificado de acordo com a gravidade da votação, a exigir um procedimento mais dificultoso conforme o grau de sensibilidade da medida.
Não há dúvida de que um mecanismo excepcional como o processo de impeachment de ministros é muito mais adequado ao quórum qualificado. Do mesmo modo, a suspensão das previsões de redução salarial e de afastamento provisório apenas compatibilizavam o texto legal com as garantias já previstas na Constituição de 1988.
Ainda, houve a exclusão de interpretação dos arts. 39, 4 e 5, da Lei 1.079/1950 que autorizasse enquadrar o mérito de decisões judiciais como conduta típica para efeito de crime de responsabilidade. Embora a conclusão pareça óbvia, e por isso mesmo, deveria ter uma aceitação unívoca por parte da imprensa, também este ponto foi criticado, no sentido de que não haveria motivo, já que o Senado sempre fez adequadamente uma interpretação restritiva das hipóteses típicas.
Ocorre que no campo político, a mobilização político-eleitoral em torno da questão do impeachment praticamente não se dá por outra razão senão a discordância do mérito das decisões judiciais. Novamente, a conveniência política parece querer sufocar a jurisdição independente e legítima, havendo, ao contrário do que apontaram algumas opiniões[8], justificativas reais para o deferimento da cautelar.
Pela mesma razão, as críticas pueris sobre uma suposta captura do léxico do constitucionalismo abusivo na fundamentação da decisão também não se justificam. Afinal, o constitucionalismo abusivo se configura com a instrumentalização de mecanismos jurídicos legítimos para produzir resultados contrários ao constitucionalismo que os sustenta: o indulto conferido à Daniel Silveira e já considerado inconstitucional pelo STF é um bom exemplo. A instrumentalização do mecanismo de impeachment sem fundamento técnico-jurídico, baseado em mera conveniência política, certamente é outro.
A crítica em relação ao fato de a decisão ter sido monocrática, igualmente carece de fundamento. Ao julgar a cautelar, ad referendum, o julgamento colegiado foi pautado para a semana subsequente, e iniciar-se-ia neste dia 12 se a própria Advocacia do Senado não houvesse apresentado fato novo nos autos, requerendo a retirada de pauta – o que foi acolhido pelo relator.
Aliás, é essa decisão – que apreciou o fato novo trazido pelo Senado – que queremos analisar a partir de agora.
Numa palavra: a anormalidade que nunca existiu e o constitucionalismo dialógico
Ao contrário do tom apocalíptico adotado por parcela significativa da mídia[9], a decisão do ministro Gilmar Mendes não implodiu a República – e o próprio Senado parece tê-lo compreendido melhor do que a mídia. E não o fez por uma razão muito singela: não há qualquer anormalidade na decisão. Não se trata de uma “canetada” ou um exacerbamento arbitrário de poder.
Como procuramos demonstrar, a decisão, que trata sobre a recepção de trechos da lei pela Constituição de 1988, se limitou a realizar uma filtragem constitucional de aspectos procedimentais do impeachment, como a legitimidade, o quórum, e uma eventual interpretação inconstitucional dos “tipos” que justificam o seu cabimento. O mecanismo de impeachment – que é um mecanismo excepcional de controle em crimes de responsabilidade – continua existindo. Ou seja, nada foi feito para além dos limites da jurisdição constitucional.
A maior prova disso é que ao peticionar nos autos da ADPF informando fato novo, o próprio Senado reconheceu a decisão como legítima para resguardar a independência do Poder Judiciário e aceitou o convite ao diálogo que lhe fez o STF. O fato novo, por sua vez, consistia na inclusão do PL 1388/2023, que trata exatamente da atualização e aprimoramento do processo de impedimento de autoridades públicas, na pauta da reunião da CCJ agendada para o dia 10.12.2025. Requereu, assim, a suspensão da cautelar para viabilizar uma solução coordenada entre as instituições.
O constitucionalismo dialógico tem como eixo essencial o diálogo entre Poderes. Como se viu, a decisão surtiu um efeito positivo a ponto de o próprio Senado Federal movimentar o processo legislativo sobre o tema. Já na decisão do dia 10.12.2025, aberto ao diálogo, o ministro Gilmar Mendes suspendeu trecho da decisão referente à atribuição ao exclusiva ao PGR para apresentar denúncia por crime de responsabilidade justamente por avaliar que o Legislativo trataria sobre o tema no curso do processo legislativo. Em relação aos outros pontos da decisão, a cautelar ficou mantida em seus fundamentos.
Por evidente, o diálogo não impede que, havendo novos desvios, uma decisão de caráter repressivo seja proferida. Mas o diálogo possibilita uma saída harmoniosa e menos abrupta para o conflito. A invocação acrítica de slogans ou da experiência estrangeira ao contexto nacional falha no ponto preciso em que a argúcia do analista é mais necessária: reconhecer como a estrutura interna da República vem se modificando, e quais as acomodações possíveis. As relações entre os Três Poderes no Brasil sempre foram tormentosas, e causas de rupturas. Compreendê-las como relações dinâmicas e não estáticas é essencial para não diagnosticarmos o STF de forma inocente.
Coadunamos com o entendimento de que as defesas ainda hígidas da democracia são a independência do Judiciário, a liberdade de imprensa e a regularidade das eleições.[10] O STF, independente e legítimo, é o espaço imprescindível para prolongar a vida minimamente saudável da nossa democracia constitucional. Separação e equilíbrio entre poderes é pedra angular de qualquer democracia e não pode ser fragilizada a partir de ameaças e confrontos contra ministros.
Há tempos defendemos o Supremo Tribunal Federal como espaço de construção de soluções dialogadas para a acomodação de dissensos. E acreditamos que a instituição deve estar aberta a críticas, as quais são diferentes de discursos de ódio e medidas hostis (no sentido da hostilidade que Rüthers nos ensina).
Um procedimento frágil (pouco dificultoso) de impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal, sem dúvidas, abre margem para medidas hostis, baseadas em conveniência política. Ocorre que em um Estado Constitucional, a conveniência política não pode se sobrepor à Constituição, cuja principiologia, e isso foi sempre bem observado pelo ministro, aponta para a necessidade de um procedimento mais criterioso, institucionalizado e técnico, a justificar uma necessária filtragem constitucional da Lei.
Há decisões corretas no direito e, ainda que estejam situadas nos pontos sensíveis em que direito e política se encontram, elas fazem bem à democracia, sobretudo quando inauguram diálogos institucionais. Só podemos desejar que, no futuro, Executivo e Legislativo passem a ser objeto do escrutínio atento de juristas e jornalistas, estendendo a eles uma generosidade que, até o momento, tem sido restrita ao STF.
Por fim, cumpre reiterar que a decisão do ministro Gilmar produziu interessante diálogo. O próprio Legislativo se escandalizou menos que a mídia e parcela da doutrina nacional. A decisão do ministro Gilmar que proibia o crime de hermenêutica foi acusada de deturpar o conceito de constitucionalismo abusivo. Com todo respeito, se a produção teórica sobre o constitucionalismo abusivo não pode coibir que juízes não sejam punidos pelo conteúdo de suas decisões, então o conceito de constitucionalismo abusivo não serve para absolutamente nada.
Infelizmente, o STF é mais vanguardista e sofisticado que parcela da doutrina constitucional brasileira. Em vez de a doutrina auxiliar a atualizar o STF, é a própria Suprema Corte que tem precisado apresentar à doutrina o que é proteção da democracia, diálogo entre Poderes e até mesmo constitucionalismo abusivo.
[1] FRAENKEL, Ernst. The Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 40.
[2] LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Trad. Alfredo Gallego Anabitarte. Barcelona: Editorial Ariel, 1976, p. 30-31, 51.
[3] FRAENKEL, Ernst. The Dual State: A Contribution to the Theory of Dictatorship. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 505.
[4] Ibidem, p. 57.
[5] Por todos, cf.: BANDEIRA DE MELLO, Luiz Fernando. Impeachment à brasileira: Contornos da responsabilidade política do presidente da República, Brasília: Senado Federal, 2024, p. 102-105.
[6] Cf.: KROSCHINSKY, Matthäus. “O STF não é uma ilha, nem um arquipélago”. In: Consultor Jurídico, 29.4.2025. Disponível em: [https://www.conjur.com.br/2025-abr-29/o-stf-nao-e-uma-ilha-nem-um-arquipelago/].
[7] Impeachment de ministros do STF. JOTA, 9.12.2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/impeachment-de-ministros-do-stf
[8] Entre outros, citamos: SOBREIRA, David. Subvertendo o constitucionalismo abusivo: STF usa a linguagem da defesa institucional mesmo quando a realidade não a justifica. JOTA, 08.12.2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/subvertendo-o-constitucionalismo-abusivo
[9] Nesse sentido: Opinião do Estadão. O Supremo está com medo. Estadão, 08.12.2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/opiniao/o-supremo-esta-com-medo/?srsltid=AfmBOooLeI-v6FWJ6YxxAPfeJZ8RfWxrkkhvPtiFReCFYFXhX_EZqbEL
[10] BALKIN, Jack M. Constitutional Rot. In: Cass R. Sunstein (org.). Can it happen here? – Authoritarianism in America. New York: Harper Collins, 2018. p. 24.