STF agiu como uma instituição resiliente

Com exceção dos tempos da ditadura militar, que afastou arbitrariamente 3 dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal em 1968, as relações da corte com os demais Poderes são marcadas por sua capacidade de resiliência ao longo da história. Independentemente das formações jurídicas e das inclinações políticas de seus membros, o STF como instituição sempre soube como enfrentar pressões e preservar suas prerrogativas sem esticar as cordas ou abrir caminho para rupturas constitucionais.

Graças a essa capacidade de resiliência, após o advento da Constituição promulgada em outubro de 1988 o Supremo – por meio de suas decisões em ações de constitucionalidade – conseguiu manter a estabilidade do sistema político independentemente da sucessão de governos com diferentes ideologias e das eventuais tensões no âmbito do Legislativo. Apesar de ter sido integrada historicamente por alguns ministros com sólida formação e outros sem muito talento, a corte também soube adaptar-se às necessidades sociais e econômicas do país.

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Quando viu um Congresso disposto a interferir nas prerrogativas de seus ministros, o Supremo também não teve o receio de agir com maior rigor na interpretação da Constituição, tomando iniciativas firmes na defesa de sua competência em matéria de controle da constitucionalidade.

Inversamente, nos períodos históricos de equilíbrio entre os Três Poderes, a corte fez o que dela se esperava – ou seja, tomou decisões moderadas, acomodou determinadas situações e firmou jurisprudência jurídica com consistente fundamentação dogmática e doutrinária.

Nesta linha, chamo atenção para o período dos governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula. Também foi o que se viu nos casos do impeachment de Dilma Rousseff e do governo Jair Bolsonaro. Ao longo de seu mandato, este último não só afrontou sistematicamente alguns ministros da Suprema Corte, como também sugeria que ela era um empecilho à vontade popular.

“Eu respeito as instituições, mas devo lealdade apenas a vocês, o povo brasileiro”, disse ele em agosto de 2019, em Itapira. “Eu sou a Constituição”, afirmou em abril de 2020, em frente ao Palácio do Planalto. “A temperatura está subindo. O Brasil está no limite. O pessoal (sic) fala que eu devo tomar providência. Estou aguardando o povo brasileiro dar uma sinalização”, vociferou na segunda quinzena de abril em 2021, também em Brasília.

Desse período em diante, as tensões institucionais cresceram em ritmo de progressão geométrica. Em 2022, Bolsonaro não mediu esforços para desautorizar e desqualificar o Tribunal Superior Eleitoral, após ter investido contra as urnas eletrônicas sob a alegação de que elas eram passíveis de manipulação.

Em janeiro de 2023, ele e seu grupo afrontaram a democracia e tentaram um golpe de Estado. Meses depois, foi tornado inelegível por essa corte. Entre o segundo semestre desse ano e 2025, o bolsonarismo não mediu esforços para exigir uma anistia ampla, geral e irrestrita. E, em novembro, Bolsonaro foi condenado a 27 anos de prisão e começou a cumprir pena.

Em resposta, a bancada bolsonarista no Legislativo passou a retaliar o STF, seja propondo alterações nas regras que disciplinam a propositura de pedidos de impeachment, seja articulando uma campanha eleitoral com três objetivos explícitos.

Em primeiro lugar, obter maioria absoluta no Senado em 2026. Em segundo lugar, eleger em 2027 um presidente do Congresso disposto a aprovar o afastamento de ministros do Supremo proposto por senadores. E, em terceiro lugar, ampliar os itens e os tipos de comportamento que podem ser enquadrados como crime de responsabilidade dos magistrados do Supremo, alargando o caminho para que o Senado invista, pressione ou chantageie os integrantes da corte.

Aproveitando-se de um processo em tramitação proposto em outubro pelo Solidariedade, o decano da corte, Gilmar Mendes, partiu para o contra-ataque. Ao julgar um processo impetrado há pouco tempo, ele tomou uma decisão cautelar, afirmando que a propositura de impeachment de ministro do STF é de competência do procurador-geral da República.

Segundo ele, como parte da legislação que trata dessa matéria entrou em vigor em 1950 e a outra parte foi aprovada em 1979, o ministro alegou que as normas hoje em vigor teriam “caducado”. Por isso, só o procurador-geral da República teria, a seu ver, legitimidade e prerrogativa de propor impeachment de um membro da corte suprema do país – o que, em termos práticos, dificulta e até impede que o STF seja intimidado por senadores inconsequentes e irresponsáveis.

Assim que a decisão de Gilmar foi anunciada, no início do mês, a narrativa de que ele teria aberto caminho para o desfiguramento do instituto jurídico do impeachment acabou prevalecendo em alguns setores da mídia. Esquecendo-se de que discordância com relação a uma decisão de um ministro do STF não se confunde com a rejeição do mérito das decisões por ele tomadas, vários comentaristas, articulistas e colunistas, afirmaram que o Supremo estaria “com medo”.

Também disseram que Gilmar teria promovido uma “mutilação constitucional por canetada”. E concluíram que a “ditadura do Judiciário” estaria sendo aprofundada. Houve até quem dissesse que leis – como a legislação sobre impeachment aprovada parte em 1950 e parte em 1979 não caducam.

São afirmações carentes de fundamentação histórica, por um lado, e de conhecimento de hermenêutica jurídica, por outro. Em termos históricos, chamo atenção para um convincente artigo publicado no Estadão pelo professor Carlos Pereira, da FGV. Partindo da premissa de que as instituições tendem a não ser neutras em ambientes conflitivos e tomando por base a literatura contemporânea em matéria de ciência política e de direito comparado, ele lembrou que, nas democracias, os tribunais constitucionais dependem de legitimidade e estabilidade institucional para exercer suas funções adjudicantes.

A seu ver, todas as vezes em que esses pilares começam a estremecer por ataques de outros Poderes, é comum que as cortes constitucionais tomem decisões que funcionam como escudos preventivos contra tentativas de redução de suas competências.

Quando os custos de inação superam os custos de ação, as supremas cortes tendem a produzir jurisprudência defensiva destinada a aumentar sua resiliência diante de ameaças externas. E quando há desgaste da confiança pública no Judiciário, o que hoje pode ser observado em várias democracias, ela tende a incentivar movimentos estratégicos de autopreservação pela corte, conclui ele, lembrando casos concretos – o último ocorreu há pouco mais de dois anos em Israel, quando o governo Netanyahu tentou, sem sucesso, enfraquecer a High Court of Justice. Na literatura, a reação institucional dessa corte à iminência de perda de poder é hoje um caso paradigmático de preemptive strike judicial.

Já no plano jurídico, quando normas jurídicas em vigor há muito tempo são aplicadas nos dias de hoje, elas implicam o que os juristas chamam de interpretação praeter legem. Esse modo de interpretação leva em conta princípios gerais de direito, fatores históricos e condições sociais, entre outros requisitos.

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Como dizia no começo do século 20 o jurista Oliver Wendell Holmes Jr., juiz da Suprema Corte americana e professor de Harvard, a vida do direito não é lógica – é experimento. As necessidades de cada época, seus padrões morais, sua vida política e suas instituições governamentais contam mais do que o silogismo na determinação das leis. “O direito não pode ser tratado como se contivesse apenas os axiomas de um livro de matemática. Para sabermos o que ele é temos de saber o que ele foi e o que ele tem tendência de ser no futuro.”

Tivessem prudência e um pouco mais de conhecimento histórico e jurídico, os comentaristas, articulistas e colunistas a que me referi acima certamente não estariam sendo úteis às torpes narrativas bolsonaristas. Cito de outro modo, não estariam reduzindo o embate entre bolsonaristas e não bolsonaristas a uma guerra, nem encarando a política apenas como um jogo de soma zero entre quem é amigo e quem é inimigo.

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