O racismo e o estado de coisas inconstitucional

Na última sessão realizada no mês da consciência negra, o Supremo Tribunal Federal decidiu levar a julgamento um caso que tende a marcar a história da corte. A ADPF 973, apresentada por um conjunto de partidos de esquerda e centro-esquerda, busca o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional decorrente do racismo estrutural e institucional no Brasil.

A ação é extensa e minuciosa, assim como o relatório produzido pelo ministro Luiz Fux. Em resumo, além do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional, a ação pleiteia a adoção de medidas administrativas capazes de corrigir padrões históricos que limitam a cidadania plena da população negra e dificultam o acesso adequado aos serviços públicos e demais frentes da atuação estatal.

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O julgamento já se mostra histórico porque, embora ainda esteja suspenso à espera dos votos de Edson Fachin e Gilmar Mendes, todos os demais ministros reconheceram a existência de violações graves de direitos da população negra brasileira, o que justifica a intervenção do próprio STF.

O voto do relator organizou muito bem a tese que viria a orientar os votos seguintes: Fux afirma que o Brasil mantém uma proteção jurídica insuficiente para enfrentar práticas discriminatórias tanto individuais como institucionais e que não promoveu políticas antirracistas adequadas para enfrentar manifestações estruturais do racismo. Destaca ainda que, apesar de a Constituição ter sido elaborada com o compromisso de enfrentar desigualdades de todas as ordens, especialmente pelo art. 3º, IV, o Estado brasileiro falhou em cumprir as promessas constitucionais relacionadas à redução das desigualdades moldadas historicamente em desfavor da população negra.

Apesar do reconhecimento comum sobre a existência de desigualdades raciais persistentes, o que de fato chama atenção é a divergência manifestada por alguns ministros. Com exceção de Flávio Dino, Cármen Lúcia e do próprio relator, os demais ministros rejeitaram a existência de um “estado de coisas inconstitucional” decorrente do racismo estrutural e institucional no Brasil, que é justamente o núcleo da ação.

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Essa categoria é usada quando o STF reconhece haver uma violação massiva, contínua e estrutural de direitos fundamentais que atinge um grande número de pessoas, que não pode ser corrigida por um único ato ou órgão, exigindo atuações coordenadas dos Poderes do Estado. A Corte já reconheceu esse quadro na análise do sistema carcerário brasileiro (ADPF 347) e vem sendo provocado a reconhecê-lo em outros tantos casos, como no desmatamento ilegal na Amazônia (ADPF 760), nas violações que acometem pessoas em situação de rua (ADPF 976) e nas práticas de segurança pública no Rio de Janeiro (ADPF 635, a “ADPF das Favelas”).

A divergência é marcante porque convive com uma contradição evidente. Os ministros admitem a persistência de desvantagens históricas, mas rejeitam que tais desvantagens derivem de violações massivas, contínuas e estruturais produzidas e reproduzidas pelo próprio Estado.

Essas desigualdades não são aleatórias nem fruto apenas de uma “cultura racista”, de “práticas individuais” ou de uma “defecção humana”, como alguns votos sugeriram. Elas são resultado direto de ações e omissões estatais nas esferas administrativa, legislativa e judiciária, que operam, de modo consciente ou não, como agentes catalisadores de discriminações sistêmicas.

Os exemplos desse diagnóstico são numerosos.

Quando moradores de periferias sentem um temor imenso ao avistar uma viatura policial, não o fazem por temer uma conduta isolada de um agente. O que se observa é a ação constante das forças de segurança e do sistema de justiça que, de forma reiterada, optam por monitorar, pôr sob suspeita, processar, condenar e encarcerar pessoas negras em proporção muito superior aos demais grupos raciais. Pesquisas mostram o uso frequente do perfilamento racial em abordagens, a dependência do reconhecimento pessoal da vítima como elemento probatório e a tendência de tratar agressões racistas como injúria racial, o que gera consequências penais mais brandas do que as previstas para o crime de racismo. Esses padrões não são desvios ocasionais, mas modos de operação institucionalmente constituídos.

Outro exemplo recorrente é a ameaça constante de supressão da variável raça/cor de censos e pesquisas oficiais. Por muitos anos, instituições públicas difundiram a ideia de que raça não era um elemento estruturante da sociedade brasileira e, em períodos de maior tensão política, essa pauta retorna, como ocorreu entre 2019 e 2022. A consequência é direta: sem dados, não há formulação nem aprimoramento consistente de políticas de enfrentamento ao racismo, e abre-se espaço para fragilizar aquelas que já existem.

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Esse padrão também se manifesta no campo político-eleitoral. A cada processo eleitoral, centenas de pessoas se candidatam e chegam a se eleger utilizando recursos públicos reservados para ampliar a diversidade racial nos parlamentos brasileiros. Encerrado o pleito, a sociedade se depara com a constatação de que parte expressiva dessas candidaturas não apresenta qualquer característica que as permita ser alvo de discriminação racial no Brasil. Trata-se de pessoas socialmente lidas como brancas que, como estratégia de campanha, declaram raça de forma inverídica para acessar recursos destinados a candidaturas negras, diante da proteção jurídica prevista nas normas e na jurisprudência dos tribunais superiores. Quando essas fraudes ganham dimensão pública, partidos de diferentes orientações políticas convergem pela adoção de anistias que neutralizam a responsabilização.

O racismo à brasileira opera de modo tão institucional e tão profundamente arraigado que, mesmo sem adotar regimes formais de segregação legitimados pelo sistema jurídico, como ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul, consolidou um convencimento coletivo de que práticas racistas são apenas episódicas. Essa percepção convive com a evidência de que a estratificação racial se manifesta de forma constante no mercado de trabalho, na educação e na esfera política.

É importante lembrar que a primeira Constituição brasileira, promulgada em 1824, ainda no contexto monárquico, não continha termos explicitamente discriminatórios, mas conviveu e contribuiu para consolidar o sistema escravocrata que perduraria por mais seis décadas, mantendo pessoas escravizadas (negras) privadas de liberdade, educação, propriedade e remuneração pelo trabalho. Esse histórico demonstra que o sistema jurídico, mesmo sem enunciar categorias discriminatórias, pode corporificar estruturas de exclusão quando as instituições do Estado se mostram incapazes de conter, enfrentar ou desestabilizar os modos de agir e pensar que produzem desigualdades.

Assim, mesmo sob uma Constituição que afirma compromissos em torno do antirracismo, a maior parte da população negra segue ocupando posições marginais e enfrentando barreiras persistentes de mobilidade social, problema que deriva do modo “regular” de funcionamento das instituições públicas, que produzem e reproduzem desigualdades raciais ao longo do tempo.

Até o momento, todos os votos no Supremo reconhecem a existência de desvantagens estruturais e o dever estatal de enfrentá-las. As divergências sobre categorias jurídicas são relevantes, mas a questão central daqui em diante será a capacidade das instituições de internalizar e cumprir os compromissos indicados pelo tribunal.

Ainda assim, causa desconforto perceber, especialmente no mês da consciência negra, que parte da Corte (cuja própria composição é alvo de críticas pela ausência de diversidade racial) negue que o racismo brasileiro seja reproduzido de forma sistemática pelas instituições públicas. O desafio que se impõe a partir deste julgamento não é pequeno.

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