A regulamentação do uso de tecnologias digitais nos processos de interação social é provavelmente o maior desafio do constitucionalismo contemporâneo. Se, por um lado, o desenvolvimento tecnológico pode ser meio para o progresso e para a satisfação das necessidades humanas; por outro, traz consigo novas possibilidades de investidas contra o regime democrático, os direitos fundamentais e o próprio Estado de Direito.
A utilização da internet para realização de ataques a institutos e instituições democráticas, difusão de fake news, manifestação de discursos de ódio e, ainda, perpetração de crimes com facilidades decorrentes do meio digital de execução ilustram bem alguns dos problemas emergentes. Paralelamente, as reações potenciais a esses efeitos nocivos da exploração da internet devem igualmente atentar-se ao respeito aos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, a vedação à censura e o direito à inovação.
É nesse cenário que exsurgem os desafios decorrentes dessa missão de regulamentação da internet, tão estruturais e intensos que configuram um novo paradigma no Estado Constitucional de Direito, denominado constitucionalismo digital.[1]
No âmbito Judiciário, há pelo menos duas ordens de fatores que são afetadas diretamente pelo desenvolvimento das tecnologias digitais. De um lado, o manejo de recursos tecnológicos por órgãos jurisdicionais em processo de digitalização tem estimulado reflexões relevantes, como as que conduziram ao aprimoramento de plataformas eletrônicas de deliberação (Plenário Virtual) nos tribunais e o estabelecimento de limites para o uso cauteloso de inteligência artificial.[2] De outro, reconhece-se a sofisticação dos novos conflitos sociais como corolário do emprego de tecnologias digitais.[3]
Sobre este último ponto, a regulamentação sobre os limites e possibilidades de exercício da liberdade de expressão na internet precisa partir da premissa segundo a qual não existe mais unicamente um conflito linear entre o Estado-regulador e o criador do discurso-regulado, mas uma relação com três intervenientes, em que as plataformas de conteúdo assumem a posição de novo regulador do discurso, posicionando-se entre o Estado e o usuário.[4] É por isso que normas focadas nessa relação dual, como a que estabelece ser livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato (art. 5°, IV, da Constituição de 1988) não são mais suficientes para regulamentar a problemática na realidade atual.
Nessa conjuntura, a doutrina defende a irradiação de direitos fundamentais nas relações privadas da internet,[5] reconhecendo, ainda, que sequer se trata de eficácia horizontal de direitos fundamentais,[6] mas de eficácia diagonal – diante da relação hierárquica que as Big Techs ocupam e de sua capacidade de influenciar o gozo de direitos fundamentais –, o que justificaria a imposição de limitações que não se aplicam para relações particulares tradicionais.[7]
Feitas essas considerações iniciais, o Brasil editou o Marco Civil da Internet (MCI) – Lei 12.965/2014 –, optando por estabelecer solução intermediária em que o Judiciário foi eleito como foro de moderação sobre abusos no exercício de liberdade de expressão na internet, de modo a afastar, em regra, a responsabilização de Big Techs relativamente à função de analisar a legalidade, a veracidade ou a ofensividade de conteúdo produzido por terceiros. Nesse sentido, o art. 19 do referido diploma estabeleceu que, com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente.
Ocorre que essa regulamentação inicial, editada há mais de uma década, passou a ser bastante questionada, especialmente por se considerar que estabelecia nível de proteção insuficiente aos cidadãos, na medida em que condicionava a responsabilidade de provedores de internet ao prévio ajuizamento de demanda judicial e estabelecia uma espécie de imunidade às plataformas digitais, que têm interesse econômico preponderante na livre circulação de ideias, ainda que consubstanciem práticas ilícitas. A celeuma chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio dos Temas 987 e 533 da Repercussão Geral, veiculados nos Recursos Extraordinários 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli; e 1.057.258, Rel. Min. Luiz Fux.
Enquanto o Tema 987 diz respeito à discussão específica sobre a constitucionalidade do art. 19 do MCI, no ponto em que determina a necessidade de prévia ordem judicial de exclusão de conteúdo como condição para a responsabilização civil de plataformas digitais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros; o Tema 533 é mais genérico e está relacionado ao dever da empresa hospedeira de sítio na internet na fiscalização de conteúdo publicado, bem como na sua retirada do ar quando considerado ofensivo, independentemente de intervenção do Judiciário.
Diante da intersecção temática, os processos foram analisados conjuntamente pelo STF, em longa deliberação, permeada por audiência pública,[8] intervenção de várias entidades públicas e privadas na qualidade de amici curiae e sucessivos pedidos de vista. O julgamento foi, enfim, concluído em junho de 2025, oportunidade em que a Corte Constitucional brasileira estabeleceu, ainda que provisoriamente e até a devida regulamentação pelo Legislativo, verdadeiro estatuto sobre o regime de responsabilidade civil de plataformas digitais.[9]
Esse julgamento é dos mais relevantes da história recente do Supremo, seja porque o assunto interessa à sociedade como um todo, relacionando-se às possibilidades de exercício cotidiano e de tutela de direitos fundamentais; seja porque o precedente apresenta teses importantes e necessárias, que contribuem para a pacificação de conflitos sobre essa temática latente na dogmática jurídica atual; seja, ainda, porque a jurisdição constitucional impulsionou a realização de diálogos institucionais entre as instituições democráticas, na medida em que reconheceu expressamente que esse é apenas mais um passo no enfretamento do problema, mas não uma solução hermética, de modo que as soluções apresentadas devem ter aplicabilidade enquanto não sobrevier nova legislação.
Em síntese, a Corte fixou diversas teses, com destaque para o reconhecimento da inconstitucionalidade parcial e progressiva do art. 19 do MCI, bem como da interpretação conforme para estabelecer que, até a superveniência de nova norma regulamentadora, o dispositivo deve ser interpretado de forma que os provedores de aplicação de internet estão sujeitos à responsabilização civil, como regra geral, nos termos do art. 21 do MCI,[10] pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crime ou atos ilícitos, sem prejuízo do dever de remoção do conteúdo. Isso significa que houve reconhecimento, como regra, de responsabilidade subsidiária de provedores de internet nas hipóteses em que, mediante recebimento de notificação pelo usuário ou seu representante legal, o provedor deixa de promover a indisponibilização do conteúdo ilícito notificado.
Outra tese extremamente relevante fixada foi o dever de cuidado em caso de circulação massiva de conteúdos ilícitos graves, por meio da qual o STF estabeleceu a responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet quando, diante de falha sistemática (não isolada), deixar de proceder à indisponibilização imediata –independentemente de notificação prévia – de conteúdos que configurem prática de crimes graves, consubstanciados em condutas e atos antidemocráticos; crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo; crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas); crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio às mulheres; crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes; e tráfico de pessoas. Assim, a Corte Constitucional estabeleceu certos deveres de cuidado aos provedores de internet, entre os quais zelar para que determinados conteúdos violadores de direitos fundamentais não sejam sequer publicados, de modo que a plataforma deve atuar de maneira diligente e proativa para que esses conteúdos não circulem, independentemente de qualquer notificação ou ordem judicial, nos casos de crimes graves.
Além disso, a Corte estabeleceu algumas teses acessórias e instrumentais, entre as quais: i) nos casos de sucessivas replicações do fato ofensivo já reconhecido por decisão judicial, todos os provedores de redes sociais devem remover as publicações com idênticos conteúdos, independentemente de novas decisões judiciais; ii) presume-se a responsabilidade dos provedores em caso de conteúdos ilícitos quando se tratar de anúncios e impulsionamentos pagos ou rede artificial de distribuição (chatbot ou robôs), hipóteses em que a responsabilização poderá se dar independentemente de notificação; iii) os provedores de aplicações de internet deverão editar autorregulação que abranja sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos; além de disponibilizar a usuários e a não usuários canais específicos de atendimento que sejam acessíveis e amplamente divulgados nas respectivas plataformas de maneira permanente; e iv) os provedores de aplicações de internet com atuação no Brasil devem constituir e manter sede e representante no país, cuja identificação e informações para contato deverão ser disponibilizadas e estar facilmente acessíveis nos respectivos sítios.
Registre-se que o STF estabeleceu algumas ressalvas na aplicação desse estatuto geral de responsabilidade civil, determinando que o art. 19 do MCI ainda deve ser aplicado nas hipóteses de crime contra a honra, sem prejuízo de notificação extrajudicial; assim como aos provedores de serviços de e-mail; de aplicações cuja finalidade primordial seja a realização de reuniões fechadas por vídeo ou voz; e de serviços de mensageria instantânea, exclusivamente no que diz respeito às comunicações interpessoais, resguardadas pelo sigilo das comunicações. Assentou, ainda, que os Marketplaces respondem civilmente de acordo com o Código de Defesa do Consumidor; e que não há responsabilidade objetiva na aplicação das teses fixadas.
Em linhas gerais, esse foi o entendimento consolidado nos longos acórdãos da Corte, aos quais se remete o leitor interessado em aprofundar o estudo sobre o tema.[11]
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Como dito, trata-se de verdadeiro estatuto provisório da responsabilidade civil de provedores de internet por conteúdo gerado por terceiros. Isso porque as teses fixadas têm natureza de generalidade e abstração que funcionam como diretrizes interpretativas que se aderem ao conteúdo normativo do MCI. Quanto ao caráter provisório, a Corte faz apelo ao Congresso Nacional para que seja elaborada legislação capaz de sanar as deficiências do atual regime quanto à proteção de direitos fundamentais, deixando clara a deferência à autoridade política responsável pela regulamentação dessa temática tão sensível, bem como a ausência de desígnio de usurpação de competência legislativa congressual, qualificada pela perenidade.
Fato é que, diante das diversas controvérsias que surgiram em decorrência da exploração de tecnologias digitais nas interações sociais, o STF foi instado a conformar um novo modelo de conflitos, e o fez com êxito, atuando de acordo com sua legitimidade institucional para a tutela jurisdicionais de direitos fundamentais, notadamente de pessoas e grupos em posição de vulnerabilidade tecnológica. Convém registrar, enfim, reflexão do Ministro Alexandre de Moraes, que tem reiteradamente defendido que liberdade de expressão não é liberdade de agressão; liberdade de expressão não é liberdade para destruir a democracia, as instituições ou a dignidade e a honra alheias; liberdade de expressão não é liberdade para disseminar declarações falsas, agressivas, odiosas e preconceituosas.[12]
Essas reflexões corroboram a convicção de que a regulamentação da internet e o estabelecimento de responsabilidade civil de plataformas digitais não são fruto de voluntarismo ideológico, mas de exigência do contexto contemporâneo para preservação substancial do regime democrático. Portanto, essa decisão do STF é inestimável contribuição para nos livrar de um indesejável corporativismo digital e da corrosão do próprio Estado Constitucional de Direito.
[1] CELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers and Technology, v. 33, n. 1, p. 76–99, 2019.
[2] O Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 615/2025 sobre o tema, na qual estabelece diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções desenvolvidas com recursos de inteligência artificial no Poder Judiciário.
[3] CARVALHO FILHO, José S. Jurisdição constitucional na era digital. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-jun-25/evolucao-jurisdicao-constitucional-brasil-digital/#_ftn2 >.
[4] ROBALINHO, Ana Beatriz. O Supremo e o Marco Civil da Internet: Onde estamos, para onde vamos, e para onde deveríamos ir. Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/o-supremo-e-o-marco-civil-da-internet >. BALKIN, Jack M. Free Speech is a Triangle. Columbia Law Review, vol. 118, n. 7, 2018. Disponível em: < https://columbialawreview.org/content/free-speech-is-a-triangle/ >.
[5] MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas da internet: o dilema da moderação de conteúdo em redes sociais na perspectiva comparada Brasil-Alemanha. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 31. ano 9. p. 33-68. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2022.
[6] VALE, André Rufino do. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.
[7] ARAUJO, Carolina Gomide de; SILVA, Christine Peter da. Direitos Fundamentais têm eficácia diagonal no Constitucionalismo Digital. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2023-dez-16/direitos-fundamentais-tem-eficacia-diagonal-no-constitucionalismo-digital/ >.
[8] Audiência pública 38 (Responsabilização civil de provedores por conteúdo ilícito gerado por terceiros), realizada entre 3 e 29/3/2023.
[9] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recursos Extraordinários 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli; e 1.057.258, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em 26/6/2025, DJe 5/11/2025.
[10] Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
[11] Inteiro teor do acórdão dos Recursos Extraordinários 1.037.396, Rel. Min. Dias Toffoli; e 1.057.258, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em 26/6/2025, disponíveis em: < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=792325589>; e < https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=792326485>.
[12] MORAES, Alexandre de. Voto proferido nas Petições n. 12.404/2024 e n. 9.935/2025, que determinaram, respectivamente, o bloqueio da rede social “X” e da rede social “Rumble” em território brasileiro.