Do governo digital ao ‘governo com IA’: o que o relatório da OCDE ensina ao Brasil

A administração pública brasileira vive um novo e decisivo estágio de sua transformação digital. Se a última década foi marcada pela digitalização de processos e pela migração de serviços para plataformas online – um movimento consolidado pela Lei nº 14.129/2021 (Lei de Governo Digital) –, o debate atual avança para um território mais complexo: a automação cognitiva de suas funções internas. A recente implementação do “SEI-IA” pela Anatel, um módulo que acopla inteligência artificial generativa ao principal sistema de processo eletrônico do país[1], é sintomático dessa transição. A IA deixa de ser uma ferramenta periférica e passa a influenciar a “estrutura decisória” do Estado, auxiliando na elaboração de minutas, resumos técnicos e na análise de documentos.

Este movimento não é isolado. No recente relatório “Governing with Artificial Intelligence“, publicado em 2025, a OCDE oferece um mapa global dessa tendência. O documento indica que, embora a adoção de IA no setor público ainda caminhe atrás do setor privado, sua implementação é inevitável e repleta de desafios únicos[2].

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O diagnóstico da OCDE é estruturado em três eixos interdependentes que definem a maturidade da implementação da IA pela administração pública: os “habilitadores” (enablers), as “barreiras” (guardrails) e o “engajamento” (engagement). A grande contribuição teórica do relatório é a conexão que estabelece entre eles, advertindo que o foco exclusivo nas barreiras em detrimento dos habilitadores leva ao “risco da inação” (risks of inaction). Segundo o relatório, a inação estatal não significa neutralidade ou prudência. Em um cenário de rápida evolução tecnológica privada, a inação é uma escolha estratégica que resulta na perda de capacidade estatal.

Nessa dinâmica, o relatório demonstra que o Estado, na era da IA, pode ser um mero “tomador de tecnologia” (technology-taker) ou um “moldador de opções” (option-shaper).

O “tomador de tecnologia” é o governo que, por inércia, restrição orçamentária ou paralisia regulatória, falha em investir nos habilitadores. Ao deixar de fomentar competências internas, ele se torna estruturalmente dependente de soluções privadas.

Consequentemente, quando decide (ou é forçado a) usar IA, ele o faz como um mero consumidor de soluções privadas prontas, geralmente opacas. O Estado se torna refém de seus fornecedores (vendor lock-in), aprofundando a assimetria informacional. A Administração Pública perde a capacidade de especificar o que contrata e, fundamentalmente, de auditar o que utiliza.

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Por outro lado, um Estado “moldador de opções” é aquele que investe estrategicamente nos habilitadores. Ele entende que, para regular, precisa deter capacidade técnica. A soberania regulatória na era da IA exige que o Poder Público tenha servidores capazes de dialogar em nível técnico com o setor privado, auditar códigos e construir soluções próprias para funções centrais.

O terceiro eixo, o engajamento, é o mecanismo que mitiga a paralisia decisória. O risco da inação é frequentemente alimentado pela “resistência algorítmica” da população, que desconfia de sistemas opacos. A OCDE sugere que o envolvimento de cidadãos e da sociedade civil no desenho da governança de IA não é um obstáculo à eficiência, mas uma condição para sua legitimidade. Ao trazer o público para o debate sobre quais barreiras são necessárias, o Estado constrói a confiança necessária para investir nos habilitadores.

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O relatório da OCDE, portanto, redefine a governança do uso estatal da IA: ela não é só um exercício de contenção de danos, mas também (e sobretudo) uma política de fomento à capacidade estatal. A falha em agir não preserva o Estado do risco; apenas faz com que, quando o impacto da IA for inevitável, o setor público esteja em sua posição mais frágil para gerenciá-lo. Essas conclusões, ao lado de outros dados constantes do relatório, têm potencial de auxiliar na transição plena do governo digital ao governo inteligente no Brasil.

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[1] “O SEI é a solução oficial do Governo Federal para produção e gestão de documentos e processos administrativos eletrônicos, desenvolvida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e cedida gratuitamente para instituições públicas desde 2013, com o objetivo de promover a eficiência administrativa”. Disponível em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/gestaoeinovacao/informacoes-sistemas-e-servicos-de-gestao/processo-eletronico-nacional/conteudo/SEI#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20o%20SEI?%20O%20Sistema,o%20objetivo%20de%20promover%20a%20efici%C3%AAncia%20administrativa. Acesso em 30/09/2025.

[2] OCDE (2025), Governing with Artificial Intelligence: The State of Play and Way Forward in Core Government Functions, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/795de142-en.

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