Constituição de 1824: Dilemas, disputas e legados da primeira Carta brasileira

A Revolução Liberal luso-brasileira de 1820-1821 derrubou o Antigo Regime absolutista e impôs a constitucionalização, proclamando a soberania da Nação portuguesa como sociedade de indivíduos livres e iguais, capazes de autogoverno.

A Constituição resultante da Revolução Liberal seria a expressão jurídica do contrato social, garantindo liberdades públicas, direitos civis e políticos e limitando o Estado pela separação de poderes.

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A história constitucional brasileira entre 1820 e a outorga da Carta de 25 de março de 1824 gira em torno da controvérsia sobre a posição do monarca no novo sistema liberal, primeiro no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e, após 7 de setembro de 1822, no Império independente do Brasil.

O fracasso do projeto luso-brasileiro de “monarquia republicana” nas Cortes de Lisboa

Obrigados a jurar a futura constituição portuguesa, D. João VI e D. Pedro estavam presos ao modelo de “monarquia republicana” da Revolução do Porto, inspirado na Constituição francesa de 1791 e na espanhola de Cádiz (1812).

Esse modelo, fundamentado no pensamento de Rousseau e Sieyès, tinha três pilares: a soberania una e indivisível da nação, representada exclusivamente por uma assembleia; a assembleia única como poder legislativo, reduzindo o rei a um funcionário subordinado; e o Estado unitário, com governos provinciais nomeados por Lisboa.

A Independência brasileira resultou de uma coalizão heterogênea que aceitava a soberania nacional, mas rejeitava a recentralização em Lisboa.

Os nativistas, ou brasilienses, como Gonçalves Ledo, Diogo Feijó, Frei Caneca e Cipriano Barata, queriam uma monarquia republicana confederada, com províncias elegendo seus próprios governos, combinando o discurso francês com o federalismo norte-americano.

Já os luso-brasileiros, ou coimbrãos, como José Bonifácio, Antônio Carlos, Carneiro de Campos e Silva Lisboa, desejavam um Brasil unitário federado a Portugal ou, após a independência, um Império unitário centrado no Rio. Rejeitavam não só o unitarismo português, mas, sobretudo, a subordinação do príncipe à assembleia única. Defendiam a “monarquia equilibrada” britânica, na qual monarca e parlamento estão em pé de igualdade.

O conflito de desenhos institucionais na Constituinte do Rio de Janeiro

A proclamação da Independência do Brasil fundou nova legitimidade: a soberania da Nação brasileira, distinta da portuguesa. Após a Independência, a disputa entre os brasilienses e os luso-brasileiros, que concordavam quanto à nova legitimidade, concentrou-se em suas perspectivas diversas sobre o sistema constitucional.

Os brasilienses queriam o mesmo sistema da Constituição portuguesa de 1822 para o Brasil: assembleia única como representante exclusiva da soberania, monarca subordinado e, idealmente, a forma de Estado confederada. Rejeitavam o bicameralismo por temer a formação de uma aristocracia de burocratas e de magistrados da Corte.

Os luso-brasileiros rompiam com a monarquia republicana, inspirando-se na tradição inglesa (1689-1707) e na Carta francesa de 1814, fundamentada no pensamento de Montesquieu e Constant, defendendo: a relativização da questão da soberania, ou a dupla representação, constituída pela assembleia e pelo imperador; o legislativo bicameral, constituído por um senado vitalício e uma câmara eletiva, e executivo independente chefiado pelo imperador; e o Estado unitário, com governos provinciais nomeados pelo Rio.

Como era impossível negar a soberania nacional em um país recém-independente, os luso-brasileiros tentaram compatibilizá-la com a monarquia equilibrada, atribuindo ao imperador a condição de primeiro representante da nação, em razão de seu papel na independência e da aclamação popular. Alegavam que o povo e o príncipe já haviam assentado bases constitucionais antes mesmo da Constituinte.

Os anteprojetos de Antônio Carlos e Carneiro de Campos

Apresentado em 1º de setembro de 1823, o anteprojeto de Antônio Carlos adaptava a Constituição portuguesa de 1822 à monarquia equilibrada: soberania nacional representada por imperador e assembleia bicameral; executivo chefiado pelo imperador; províncias transformadas em comarcas sem autonomia, governadas por presidentes nomeados. Já fora do governo, os Andradas cederam, não concederam ao imperador primazia na representação nem o direito de dissolução da câmara baixa.

A vitória nativista parecia próxima. A dissolução da Constituinte, em 11 de novembro de 1823, permitiu ao imperador retomar o projeto original com o Conselho de Estado. O novo anteprojeto, redigido por Carneiro de Campos, era mais enxuto e ousado, visava “monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia”.

O projeto fortalecia os dois polos da soberania: a declaração de direitos mais sistemática e o imperador como chefe supremo e primeiro representante da nação. Ao mesmo tempo em que mantinha o bicameralismo, criava o poder moderador exclusivo do imperador — um quarto poder destinado a garantir o equilíbrio constitucional, incluindo o direito de dissolver a câmara. Além disso, mitigava o unitarismo extremo ao prever conselhos gerais de província eletivos, sem poder legislativo. O texto foi outorgado, com pequenas alterações, em 25 de março de 1824.

A revanche nativista: o Ato Adicional de 1834

Os coimbrãos justificaram a dissolução e a outorga como atos legítimos do primeiro representante da nação, alegando que a Constituinte perjurara as bases previamente acordadas na aclamação. Posteriormente, a maioria das câmaras municipais peticionou a outorga imediata. Tratava-se de uma doutrina napoleônica adaptada: em crise, o príncipe substitui a assembleia. Os nativistas se opuseram a essa perspectiva, aceitando apenas a monarquia republicana confederada.

Com a derrota da Confederação do Equador em 1824, a pressão federalista sobreviveu. Após a abdicação de D. Pedro I em 1831, os liberais exaltados, antigos nativistas, voltaram ao poder. O Ato Adicional de 1834 substituiu os conselhos provinciais por assembleias legislativas com competência própria, transformando o unitarismo em semifederalismo.

A reforma promovida por uma câmara eleita com poderes constitucionais conferiu à Constituição de 1824 a legitimidade popular que os liberais julgavam faltar.

A Lei de Interpretação de 1840, conservadora, restringiu os excessos autonomistas, mas não reabriu a questão da legitimidade da Carta. As disputas passaram a ser de interpretação, não de princípio. Dessa forma, o regime estabilizou-se no Segundo Reinado.

A sombra do Poder Moderador

A Constituição de 1824 reteve aspectos centrais de ambos os modelos constitucionais que a inspiraram. Do modelo da monarquia republicana, originado na tradição francesa e adotado por Portugal em 1822, a Constituição reteve a soberania nacional e a centralização. Do modelo da monarquia equilibrada, originado na tradição britânica e adotado pela Carta francesa de 1814, a Constituição adotou o governo misto bicameral e o poder moderador, atribuído ao imperador como primeiro representante da nação.

Dez anos após a outorga da Constituição, os antigos nativistas, que haviam retornado ao governo, reformaram a forma de Estado, tornando-a semifederal. Assim, a Carta tornou-se patrimônio de todos.

As doutrinas adotadas pela Constituição de 1824 deixaram herança duradoura à República, entre as quais se destacam as principais leituras sobre a figura do poder moderador.

Após a Proclamação da República, a leitura liberal, que via a Coroa como mera árbitra constitucional, sem governar, passou a atribuir essa função ao Supremo Tribunal Federal; a leitura conservadora, que via a Coroa como instituição pré-existente e superior à Constituição, tutora da nação em um país de sociedade fraca, transferiu o papel de poder moderador às Forças Armadas.

O embate contemporâneo entre o judiciarismo e o militarismo — ambos vendo-se como tutores da política em momentos de crise durante a República — tem origem nessas perspectivas distintas, marcas persistentes dos dilemas e disputas sobre a Constituição de 1824, evidenciando seu legado duradouro.

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