Comecei a advogar em 1987. Todos os processos, judiciais e administrativos, só existiam em papel. Eram objetos completos, com começo, meio e fim imediatamente cognoscíveis: capa, volumes, documentos ordenados em sequência previsível, folhas numeradas. Ao lado, havia o bloco e o porta-lápis. O contato com o processo começava na ponta dos dedos, no toque das folhas de papel, antes de passar para a visão.
Era a leitura física quem se impunha, exigente de movimentos lentos e contínuos: manusear, anotar, comparar trechos, voltar páginas e reconstruir o caso a partir da ordem material dos autos. Ainda que houvesse pressa, a folha precisava ser virada e arrumada com as mãos. Cada processo impunha um ritmo próprio, diverso dos outros, e o leitor seguia o caminho que o objeto lhe oferecia.
Quase quatro décadas depois, a materialidade desapareceu. Os autos do processo se transformaram em um fluxo digital composto por arquivos fragmentados (PDFs, anexos, áudios, fotografias, vídeos, links). Nada que possa ser tocado. As petições são imagens roladas na tela. Decisões chegam rápido, em múltiplas notificações. O número de processos por magistrado e por advogado cresceu de forma exponencial. A leitura deixou de ser individualizada e linear; passou a ser interrompida, dispersa e mediada por alertas permanentes. Inexistem começo, meio e fim previsíveis. Tornamo-nos, leitor e leitura, reféns da lógica efêmera dos arquivos digitais.
A aceleração não decorre apenas do aumento da carga de trabalho. Ela é consequência de uma nova ecologia da leitura. O digital reorganizou o gesto de ler: vemos sempre a mesma tela, onde buscamos palavras-chave, avançamos direto ao dispositivo, alternamos entre abas, confiamos em resumos automáticos e consumimos vídeos em velocidade aumentada. O rito e o ritmo são outros. A leitura deixa de ser percurso, uma interação viva, para se tornar extração de dados. E essa lógica, reforçada por plataformas, algoritmos e urgências simultâneas, pode produzir leitores habituados a “passar os olhos”, não a reconstruir sentidos.
Esse comportamento não é isolado. Ele integra um fenômeno mais amplo, já descrito por pesquisadores das ciências humanas e comportamentais: ler rápido, ver vídeos acelerados, rolar telas e receber estímulos contínuos altera a forma como a atenção se organiza. Tudo no automático, sem outra reflexão além da permitida pelos quinze segundos de interação. Acabou, segue-se à próxima tela.
A leitura acelerada privilegia fragmentos e reduz a percepção de totalidade. No vocabulário contemporâneo, fala-se em brain rot como o verdadeiro apodrecimento da atenção após exposição constante a estímulos rápidos, breves e repetidos. Trata-se da perda de profundidade, não de inteligência: a mente se adapta ao ritmo que recebe. Conscientes ou não, deixamos de estar atentos à profundidade e às essências.
Na advocacia, essa adaptação tem efeitos diretos. Precedentes citados por parte da ementa, não pelo caso concreto nem, muito menos, por sua ratio decidendi. Uma frase é o que basta. Contratos longos lidos apenas por tópicos. Pareceres consultados pela conclusão e respostas aos quesitos. Votos complexos assistidos em vídeos curtos gravados por terceiros, em velocidade acelerada (sem voz, com legendas automáticas). Provas que se perdem em anexos ignorados. Em todos esses exemplos, a aceleração transforma o exercício profissional em algo bastante arriscado, se não vazio: decisões e orientações tomadas com base em recortes, em flashes cognitivos, não em análise, compreensão e raciocínio autônomo.
É preciso tomar consciência desse risco. A leitura jurídica exige ver o conjunto, acompanhar a lógica interna de um argumento, perceber nuances de tempo e contexto. Requer conhecimento não só do texto da lei, mas da sua razão de ser. Demanda exame a sério da dogmática jurídica e sua dissociação cronológica-territorial.
Todavia, pouco ou quase nada disso se preserva quando o leitor se move na velocidade do gesto digital. A atenção fragmentada torna a técnica imprecisa, reduz a qualidade da escrita e compromete o aconselhamento. Pode apodrecer a necessária atenção que todos e cada um dos casos merece. Não é um problema tecnológico, mas de método.
Desacelerar, portanto, é uma decisão profissional, não um apego ao passado. Alguns documentos precisam ser lidos integralmente, com interrupções mínimas. Precedentes relevantes exigem reconstrução do caso e da razão de decidir. Contratos centrais não admitem leitura em diagonal. Pode ser cansativo, mas a vida é assim – exige esforço. A prática jurídica precisa continuar fundada no domínio do tempo: naquele de ler, de compreender e de, só então, escrever ou aconselhar.
Em um ambiente que incentiva a velocidade, manter a capacidade de ler devagar tornou-se parte da responsabilidade técnica do advogado. Como costumo dizer, a melhor técnica para escrever bem é ler bastante. Não uma leitura extensiva e febril, em grande quantidade, das novidades instantâneas; mas, sobretudo, intensiva e atenta, lida e relida. A advocacia continua dependente de atenção profunda. E a atenção, como sempre, é incompatível com a pressa.