A recente Consulta Pública ANP 01/2025, que propõe critérios técnicos objetivos para classificação de gasodutos de transporte, tem suscitado debates sobre os limites da competência regulatória federal e estadual. Parte da discussão, porém, parte de premissas equivocadas sobre a natureza do pacto federativo brasileiro e sobre o papel das agências reguladoras na harmonização de sistemas de infraestrutura de interesse nacional.
A Constituição Federal atribuiu o monopólio do transporte dutoviário à União e aos estados o direito de explorar diretamente ou mediante concessão os serviços locais de gás natural canalizado. Apesar dessa divisão entre transporte (União) e distribuição local (estados), o art. 22, IV determina que somente a União pode legislar sobre energia, o que inclui o gás natural.
Essa centralização normativa, não apenas em sentido estrito, decorre da importância estratégica do setor energético e da necessidade de garantir coerência, uniformidade e segurança jurídica em todo o território nacional.
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A legislação federal distingue de forma clara as atividades. A Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997) define, em seu art. 6º, VII, o transporte como a movimentação de petróleo, derivados, biocombustíveis ou gás natural em percurso de interesse geral, enquanto a distribuição de gás canalizado (art. 6º, XXII) é caracterizada como serviço local de competência dos estados, nos termos do art. 25, §2º da Constituição que designou aos estados a exploração dos serviços locais de gás canalizado, de forma residual ao monopólio federal instituído pela Constituição, nos termos do §1 do art. 25.
A crítica de que a ANP estaria “invadindo” competências estaduais ao estabelecer parâmetros técnicos de diâmetro, pressão e extensão ignora não apenas a Constituição Federal, a Lei 9.478/1997 e a Lei 14.134/2021, mas também precedente relevante do Supremo Tribunal Federal.
Ao julgar a Reclamação 4210/SP, a Segunda Turma do STF, em março de 2019, enfrentou essa questão de delimitação de competências entre União e estados no setor de gás. O tribunal reconheceu clara gradação: à União, por meio da ANP, compete a regulação do transporte de gás natural desde os pontos de produção até as distribuidoras; aos estados cabe explorar o serviço local de gás canalizado.
O voto condutor, da ministra Cármen Lúcia, estabeleceu princípio fundamental: embora o monopólio da União sobre o transporte seja exceção constitucional à livre iniciativa e deva ser interpretado restritivamente, isso não significa ausência de competência federal para delimitar esse monopólio. É precisamente por se tratar de exceção que exige delimitação clara e objetiva.
A competência para estabelecer esses limites não pode ser fragmentada em 27 interpretações estaduais diferentes, sob pena de inviabilizar o próprio sistema integrado de transporte. Tal entendimento tem o condão de defender a segurança do abastecimento nacional.
Há, portanto, limitação recíproca das competências: a União não pode regular o que é genuinamente serviço local de distribuição, mas os estados tampouco podem, mediante simples classificação administrativa, transformar em “distribuição” aquilo que tecnicamente configura infraestrutura de transporte de interesse nacional. A regulação federal por critérios técnicos não apenas é compatível com a autonomia estadual, mas é condição necessária para que essa autonomia se exerça dentro de fronteiras reconhecíveis e estáveis.
Quando a Lei 14.134/2021 estabeleceu que gasodutos cujas características técnicas superem limites estabelecidos pela ANP serão classificados como de transporte, o legislador federal não criou competência nova ou exorbitante. Regulamentou a competência constitucional já existente da União, estabelecendo critério objetivo e transparente. A alternativa seria deixar essa distinção ao sabor de interpretações casuísticas e potencialmente conflitantes de cada agência estadual, criando insegurança jurídica sistêmica.
A segurança do abastecimento nacional também constitui objeto de disciplina legal. A Lei 9.847/1999, ao tratar da fiscalização das atividades relativas ao abastecimento de combustíveis, qualifica esse abastecimento como de utilidade pública e abrange as atividades de produção, importação, exportação, transporte, transferência, armazenagem, estocagem, distribuição, revenda e comercialização de combustíveis e biocombustíveis, bem como a avaliação de conformidade e a certificação de sua qualidade.
Esse diploma submete a atividade de distribuição à regulação e fiscalização da ANP, reforçando a natureza nacional, a abrangência geral e a importância estratégica desse insumo, incompatíveis com soluções normativas fragmentadas ou contraditórias no território brasileiro. A acusação de “invasão de competência estadual” inverte a lógica constitucional.
Não é a ANP que invade competências ao estabelecer critérios técnicos; são alguns estados que, ao classificar como “distribuição” gasodutos com características técnicas inequívocas de transporte, buscam apropriar-se de competência federal. Um gasoduto que opera em alta pressão, possui grande diâmetro e conecta fontes de suprimento à malha não se torna “local” simplesmente porque uma agência estadual assim o denominou.
A alegação de retroatividade e conversão de ativos já existentes também não se sustenta. A Lei 14.134/2021 estabeleceu marco temporal claro, que a ANP corroborou na minuta de Resolução apresentada: gasodutos autorizados até 9 de abril de 2021 (publicação da referida norma) mantêm sua classificação. Não há direito adquirido a regime jurídico, como a jurisprudência do STF tem reiteradamente afirmado. Classificar um gasoduto conforme suas características técnicas é ato declaratório que reconhece a natureza do ativo.
Também foram feitas críticas quanto à suposta ausência de Análise de Impacto Regulatório. Contudo, como a ANP apresentou seu AIR, essa crítica é que se mostra factualmente incorreta. A ANP apresentou em seu AIR, estudos de benchmark internacional, análises de impacto econômico e múltiplas rodadas de consultas públicas que receberam mais de 140 contribuições. O processo foi transparente, participativo e tecnicamente fundamentado, calcado na legitimidade de participação popular em cumprimento as determinações legais e melhores práticas regulatórias.
O argumento falacioso de que critérios técnicos nacionais prejudicariam consumidores estaduais inverte a realidade econômica. Os verdadeiros impactos tarifários negativos decorrem da fragmentação regulatória que permite bypass da malha de transporte por grandes consumidores com investimentos ineficiente e sustentável, esvaziando a base de usuários e elevando tarifas para todos os demais. Quando um gasoduto com características de transporte é artificialmente classificado como distribuição, permite-se que volumes significativos contornem o sistema integrado, prejudicando sua sustentabilidade econômica.
A competência da ANP para estabelecer critérios técnicos não é poder regulatório exorbitante, mas exercício necessário da atribuição constitucional da União sobre transporte de gás natural. Sem parâmetros nacionais objetivos, cada estado estabeleceria desordenadamente seus próprios critérios conflitantes, gerando insegurança jurídica e fragmentação do sistema. Investidores ficariam reféns de interpretações divergentes sobre a própria natureza de seus ativos.
A verdadeira proteção ao pacto federativo não está em negar à União a competência para delimitar sua própria esfera de atuação constitucional, mas em assegurar que essa delimitação seja feita de forma objetiva, transparente e tecnicamente fundamentada. É precisamente o que a ANP propõe ao estabelecer critérios mensuráveis. O pacto federativo não é ameaçado quando a União exerce competências que a Constituição lhe atribuiu, mas quando nomenclaturas administrativas estaduais contradizem realidades técnicas de ativos que, por sua natureza, integram sistemas de interesse nacional.
Cabe, por fim, ao STF, na condição de guardião da Constituição, fazer valer a designação do monopólio federal sobre o gás natural, conferindo segurança jurídica à atuação regulatória da ANP e preservando a integridade do sistema brasileiro de gás.