Ética em pesquisa no STF: a inconstitucionalidade da Lei 14.874/24

Em 16 de setembro de 2025, a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.875 para impugnar a Lei 14.874/24, que dispõe sobre pesquisas com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

A ação foi distribuída ao ministro Cristiano Zanin e, desde então, se transformou no terreno para uma disputa extremamente relevante para o direito constitucional brasileiro: quais as garantias institucionais mínimas que o Estado brasileiro deve atribuir aos mecanismos de controle ético de pesquisas com seres humanos.

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A pedido da presidência da SBB, preparei um parecer analisando alguns dos questionamentos mais relevantes do debate sobre a constitucionalidade da Lei 14.874/24 e do status jurídico do sistema de controle de ética em pesquisa desde a promulgação da Constituição de 1988 até aqui. Este artigo expõe um resumo dos questionamentos trazidos pela SBB e das conclusões do parecer.

O contexto geral do debate pode ser resumido em cinco fatos-chave: (i) em 1996, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) instituiu a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) para, em conjunto com os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) do país, fazer o controle ético de pesquisas com seres humanos; (ii) esse sistema de controle ficou conhecido como Sistema CEP/Conep, que atuou na defesa dos direitos de participantes de pesquisa até a promulgação da Lei 14.874/24; (iii) a lei sob análise criou o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos sem qualquer regra de transição para o Sistema CEP/Conep ou tentativa de harmonização com os parâmetros éticos antes definidos nas resoluções do CNS, como se fosse a primeira positivação sobre o tema no direito brasileiro; (iv) a lei determinou a criação de um órgão colegiado independente na estrutura do Ministério da Saúde para exercer competências e atribuições que eram até então do CNS; e (v) em 7 de agosto de 2025, foi publicado decreto regulamentador da lei (Decreto 12.651/2025).

Os questionamentos apresentados pela SBB foram três: (i) antes da edição da Lei 14.874, havia um marco legal que desse lastro jurídico para a atuação do Conselho Nacional de Saúde e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa na definição e controle de padrões éticos de pesquisas envolvendo seres humanos?; (ii) poderia a Lei 14.874 criar órgão para substituir a Conep no controle ético de pesquisas com seres humanos, definir suas atribuições e sua estrutura organizacional no Ministério da Saúde e subordiná-lo a órgão responsável pela ciência e tecnologia?; e (iii) a proteção conferida pela Lei 14.874 aos participantes de pesquisa passa pelo crivo constitucional de defesa da dignidade humana quanto ao requisito de consentimento livre e esclarecido?

Marco legal do Sistema CEP/Conep (1996-2024)

No que diz respeito ao tratamento jurídico da matéria antes da edição da lei, o parecer demonstra que o Sistema CEP/Conep contava com evidente lastro legal, que vinha desde o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Com efeito, a Lei do SUS (Lei 8.080/90) atribuiu à Administração Pública a competência para definir e controlar os padrões éticos para pesquisa, em articulação com os órgãos de fiscalização do exercício profissional e outras entidades representativas da sociedade civil (art. 15). E determinou especificamente ao CNS que fossem criadas comissões intersetoriais de âmbito nacional para articular políticas públicas e programas de interesse para a saúde (art. 12).

Em cumprimento ao comando legal, o governo federal delegou ao CNS a competência para atuar na observância de padrões éticos nas pesquisas científicas e tecnológicas (Decreto 99.438/1990, art. 1º, VII e Decreto 5.839/2006, art. 2º, VII). O CNS, por sua vez, instituiu comissão intersetorial de âmbito nacional para articular as políticas e executar o controle dos padrões éticos em pesquisas (Resoluções CNS 196/96, 446/2011, e 466/2012).

Nesse ponto, vale destacar que não há mérito em dizer que o governo federal nunca teve a intenção de delegar a atribuição de definição e controle de padrões éticos ao CNS porque a disposição literal dos decretos de organização do CNS não é suficientemente clara.

Essa tese não sobrevive a uma análise mais ampla do direito federal. Desde 2000, todos os decretos de organização do Ministério da Saúde mencionam textualmente a existência da Conep no âmbito do CNS e seu papel institucional. Isso quer dizer que a interpretação do próprio Poder Executivo federal sobre seus decretos de organização do CNS sempre foi que a competência havia sido devidamente delegada.

Essa interpretação perdurou oito mandatos de cinco presidentes da República diferentes, além de nada menos que 13 reorganizações do Ministério da Saúde, até a edição da Lei 14.874 e a consequente suplantação do Sistema CEP/Conep. Em resumo: não seria razoável dizer que os Decretos Presidenciais 99.438/90 e 5.839/06 não foram suficientemente claros quanto à delegação. Afinal, diversos outros decretos presidenciais tomam essas atribuições do CNS e da Conep como premissa para a organização de outros órgãos da Administração Pública federal.

A estrita legalidade do Sistema CEP/Conep, portanto, sempre esteve presente.

Usurpação de competência, irrazoabilidade e violação literal a norma de status constitucional

A resposta às duas subsequentes perguntas da consulente revela que a Lei 14.874 é inconstitucional em razão de vícios formais e materiais gravíssimos.

Em primeiro lugar, trata-se de lei de iniciativa parlamentar que dispõe sobre as atribuições e organização do Ministério da Saúde, em flagrante usurpação da competência do presidente da República (CF/88, arts. 61, § 1º, II, e e 84, VI, a). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema é pacífica.

Em segundo lugar, o sistema de controle ético instituído pela lei subordina o órgão de controle da atividade de pesquisa ao órgão de fomento dessa mesma atividade. Trata-se de arranjo institucional que não seria capaz, mesmo em tese, de produzir resultados compatíveis com a Constituição, muito menos de atingir os objetivos aos quais se propõe. Essa configuração organizacional é incompatível com o princípio da razoabilidade e fere os direitos fundamentais que o órgão de controle se propunha a proteger (CF/88, arts. 1º, III; 5º, caput e II e X; 6º e 196).

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Em terceiro lugar, a lei impõe limitação injustificada à participação social na saúde ao remover do CNS atividade de controle da atuação da própria administração federal, na qualidade de fomentador e patrocinador de pesquisas com seres humanos. Ofende, portanto, o princípio de participação da comunidade em temas de saúde (CF/88 art. 198, III).

Por fim, ao dispensar o requisito de consentimento livre e esclarecido em casos de “urgência” na pesquisa, a lei viola disposição constitucional literal e passa por baixo do crivo mínimo de proteção ao direito à saúde, à autonomia da vontade e à dignidade humana, tais como interpretados por inúmeros precedentes do STF (CF/88, arts. 1º, III; 5º, caput e II e X; 6º e 196; e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, art. 15 c/c art. 5º, § 3º da CF/88).

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A conclusão do parecer é que a criação da Instância Nacional de Ética em Pesquisa é eivada de vícios formais e materiais que conduzem à sua inconstitucionalidade. Como a criação dessa figura é central ao Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos que a lei institui, sua invalidade conduz à nulidade da Lei 14.874 como um todo e de seu decreto regulamentador (Decreto 12.651/25), por arrastamento, nos termos da jurisprudência do STF.

O parecer pode ser lido na íntegra neste link: https://labrys.one/parecer-adi-7875

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