Pejotização e marcha da insensatez: como o STF gestou pior decisão no século 21

Vamos lembrar como começou o maior erro judiciário da história recente do STF: a corte foi inicialmente provocada a analisar a inconstitucionalidade da vedação de terceirização em atividade-fim, estabelecida na Súmula 331 do TST, no controle difuso de constitucionalidade (RE 958.252).

Idêntica questão foi posta mais adiante, em processo de controle concentrado (ADPF 324) que buscava afirmar a constitucionalidade da Reforma Trabalhista, exatamente na parte em que alterava o entendimento do TST, para permitir a terceirização em atividade-fim.

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Esses dois casos foram julgados conjuntamente 30.08.2018, como Tema Repercussão Geral 725. Em seguida (16.06.2020), também foi julgado um conjunto de ADIs com o mesmo objeto, sobre alterações na Lei do Trabalho Temporário, que igualmente permitiam esse tipo de terceirização em atividade-fim.

Além destes casos, o tema da terceirização em atividade-fim seria enfrentado em outras duas ações de controle concentrado, que cuidavam da constitucionalidade do fenômeno em setores econômicos específicos, quais seja o do transporte autônomo de cargas, Lei (ADC 48, julgada em 05.09.2019) e dos salões de beleza em regime de parceria, Lei 13.352/16 (ADI 5625, julgada em 28.10.2021).

Um detalhe aqui é importante para compreender como o STF acabaria por subverter completamente o sistema de precedentes vinculantes tal como posto na Constituição e no CPC e, mais adiante, por admitir e julgar procedentes reclamações sobre matéria trabalhista que não tinham qualquer aderência estrita com o julgado nos referidos leading cases: a questão jurídica submetida ao Supremo era, em todos os casos, apenas e tão somente, a possibilidade de terceirização de trabalho em atividade-fim.

Ou seja, a possibilidade de contratação de uma empresa por outra, na situação fática em que a contratada coloca seus trabalhadores à disposição do contratante para executar atividade inerente e finalística à sua atividade econômica. Basta ler os acórdãos acima referidos para perceber que em todos os votos os argumentos e debates se restringiram a esse único tema.

Absolutamente nenhum dos votos se referiu a situações fáticas distintas da terceirização, como a contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas (os famigerados “pejotizados”) ou a outras hipóteses de contratos civis que, com frequência, são usados para mascarar a relação de emprego (por exemplo, franquias de fachada, sócios minoritários de 0,01%, cooperados de fancaria, “autônomos” sem autonomia, “parcerias” com subordinação, entre outros modelos que, repita-se, nada tem a ver com terceirização, já que nesta os trabalhadores terceirizados têm carteira registrada e naquelas outras não).

Outro importante e fundamental aspecto para compreender a teratologia jurídica gestada pelo Supremo é que na ratio decidendi dos processos de terceirização a corte ressalvou de forma explícita (como no voto de Alexandre de Moraes no RE 958.252 e na ADPF 324) que ficava garantida a possibilidade de a Justiça do Trabalho coibir casos de fraude por desvirtuamento fático de terceirização (“O direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”).

Semelhante ressalva também foi feita no caso do transportador autônomo na ADC 48 pelo relator, Luís Roberto Barroso, às fls 45 do acórdão, quando se manifesta em relação ao voto de Edson Fachin que mencionava a possibilidade de fraude na contratação de motoristas autônomos:

Logo, se a hipótese que se puser concretamente for a de alguém que esteja trabalhando como empregado, eu concordo com o Ministro Fachin. Mas, se esta for a hipótese, não incide a Lei. A hipótese que está prevista na Lei eu considero que é válida e legítima. Portanto, entendo a posição do Ministro Fachin de explicitar isso, mas não há uma divergência de fundo, porque acho que a lei, com clareza, exclui a possibilidade desta malversação, salvo hipóteses de fraude.

No mesmo sentido foi a manifestação do relator Dias Toffoli na ADI dos salões de beleza. Neste último, inclusive, a ressalva constou expressamente da tese, nos seguintes termos: “A higidez do contrato (de parceria) é condicionada à conformidade com os fatos, de modo que é nulo instrumento com elementos caracterizadores da relação de emprego. Estando presente elementos que sinalizam vínculo empregatício, este deverá ser reconhecido pelo Poder Público, com todas as consequências legais decorrentes, previstas especialmente na CLT”.

Pois bem, voltando ao julgamento conjunto da ADPF 324 (cujo relator era o ministro Barroso), com o RE 958.252 (cujo relator era o ministro Fux), a tese de repercussão geral proposta inicialmente por Barroso foi a seguinte: “1.É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e capacidade econômica da terceirizadas; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento de normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias na forma do art. 31 da Lei 8212/1993″. Como se vê, esta suma do julgamento estava de fato restrita ao que fora deliberado pela corte.

No entanto, não se sabe exatamente por que, prevaleceu a “tese” proposta pelo ministro Luiz Fux, que simplesmente incluía algo que não foi julgado em nenhum dos processos, como se vê de sua redação: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da contratante”.

O verbete da tese inclui “decisão” que não fez parte do julgamento (“qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”) e ao mesmo tempo excluiu parte essencial do que fora efetivamente decidido: a ressalva quanto aos casos de fraude.

Com essa redação totalmente descolada da ratio decidendi, as empresas perceberam que o STF havia criado uma “janela” para se questionar toda e qualquer decisão da Justiça do Trabalho que reconhece vínculo a partir de um contrato civil fraudulento, muito embora, repito, em nenhum momento o STF tenha julgado essa matéria na ADPF 324 e no RE 958.252.

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Imaginemos que o STF tivesse sido fiel e adstrito ao que efetivamente foi julgado e tivesse redigido o verbete de forma a refletir o que decidido, inclusive, para incluir a ressalva sobre as hipóteses de fraude. Se assim fosse, pergunto: teria ocorrido uma avalanche de reclamações contra decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo em caso de pejotização e fraudes que tais? É caro que não!

Portanto, ao contrário do que apregoa publicamente Gilmar Mendes, o tsunami de reclamações sobre o tema 725 que inundou o tribunal não foi provocada por um descumprimento reiterado do precedente pelos tribunais trabalhista. Os juízes do trabalho simplesmente fizeram o distinguishing, estabelecendo que os casos eram de pejotização e não terceirização.

Não deve passar sem nota o fato de que são raríssimas as reclamações que foram ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que reconheceram vínculo por terceirização em atividade-fim, posto que os juízes trabalhistas estão no geral observando fielmente esse precedente.

Portanto, quem criou a insegurança jurídica e deu azo à avalanche de reclamações foi o próprio Supremo, ao inventar “from thin air” um “superprecedente” descolado do julgamento, que derruba jurisprudência consolidada da Justiça do Trabalho ao longo de 80 anos baseada nos arts. 3º. e 9º. da CLT que, ao que sabe, nunca foram declarados inconstitucionais!

Tanto isso é verdade que o próprio Gilmar Mendes “pescou” um RE que tratava de suposta falsa franquia para submeter um novo caso de repercussão geral específico sobre pejotização (RG 1389).

Ora, isso não tem lógica alguma: se o tema 725 já teria incluído a permissão irrestrita de pejotização como modalidade de terceirização (e os ministros que deferem as reclamações partem induvidosamente desta premissa), então por que haveria a necessidade de criar outro precedente específico sobre o tema?

Ao dizer que o STF precisa disciplinar a pejotização, Gilmar Mendes admitiu que não havia até então precedente sobre isso, demonstrando que todas as reclamações julgadas procedentes o foram sem observância da “estrita aderência” que se exige para manter a autoridade de um precedente.

Qual a consequência dessa “marcha da insensatez”, para parafrasear a historiadora Barbara Tuchman? O Supremo manda mensagem à sociedade e ao empresariado de um “liberou geral”, ou seja, se é possível contratar trabalhadores por contrato civil, com presunção de validade absoluta, então as normas de Direito do Trabalho deixam de ser cogentes, para se transformar em normas facultativas.

Agora, ao invés de contratar empregado com as garantias dos direitos sociais previstos na Constituição, as empresas estão autorizadas pelo STF a dar o óbulo misericordioso de um contrato civil para o trabalhador, sem direito a registro em CTPS, férias, 13º, limitação da jornada etc., e para as trabalhadoras, um presente especial da nossa Suprema Corte: não há mais estabilidade da gestante, equiparação salarial com homens e o assédio sexual está liberado!

Que admirável mundo novo os cultos ministros do Supremo estão criando! Conceberam uma forma de tornar o artigo 7º letra morta!  Pela primeira vez na história do constitucionalismo, nossos ministros criam um direito fundamental facultativo, pelo que certamente serão objeto de altos estudos no futuro.

Mas não é só isso, ao justificar – em alguns casos – que tais contratos civis de trabalho sejam destinados a trabalhadores supostamente hipersuficientes, o STF chancela a injustiça tributária, como já foi notado pelo Procuradoria Geral da Fazenda Nacional: aqueles que ganham remuneração maior pagarão menos impostos, proporcionalmente, do que trabalhadores com carteira assinada que ganham menos. É um grande feito de engenharia social “iluminista”: punir os pobres trabalhadores com impostos e isentar os graúdos. Que não se culpe o Congresso Nacional nesse caso.

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Não bastasse tudo isso, diversos estudos demonstram que a pejotização ilimitada, franqueada pelo STF, está trazendo prejuízo bilionário aos cofres do INSS. Segundo estudo da FGV-SP, a perda já se aproxima de R$ 70 bilhões, uma vez que está ocorrendo uma migração massiva de contratos de trabalho para o modelo MEI, no qual o empregador está isento de contribuição previdenciária.

Até quando os ministros do STF vão insistir nessa marcha da insensatez? Os Poderes Legislativo e Executivo vão assistir inertes a esse exercício abusivo de poder travestido de decisão judicial?

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