Mariana, Londres e a disputa pela justiça

A decisão recente da Justiça inglesa no caso do desastre de Mariana reacendeu um debate essencial sobre soberania, reparação e o papel de financiadores privados em litígios internacionais.

Quase dez anos após o rompimento da barragem de Fundão, o tema ultrapassa a narrativa judicial e passa a integrar discussões sobre governança global — especialmente no momento em que o governo brasileiro apresentou, na COP30, o novo Acordo do Rio Doce como modelo internacional de reparação socioambiental, destacando sua capacidade de fortalecer políticas públicas, ampliar a proteção social e colocar comunidades atingidas no centro das decisões.

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A seguir, uma análise dos principais pontos que emergem dessa nova fase do caso.

Soberania jurídica brasileira: um alerta que ultrapassa Mariana

A iniciativa da Justiça inglesa de julgar demandas relacionadas a um desastre que ocorreu integralmente no Brasil — com vítimas brasileiras e agentes econômicos regulados pelo Estado brasileiro — reabre um debate sensível: até onde cortes estrangeiras podem avançar sobre litígios que, por sua natureza, pertencem ao ordenamento jurídico nacional?

A preocupação é concreta. Hoje é o Judiciário britânico. Amanhã, qualquer outro tribunal estrangeiro pode pretender ditar regras de reparação para fatos ocorridos no território brasileiro. O risco institucional é evidente.

Por isso, a decisão do ministro Flávio Dino, ao determinar que nenhuma sentença estrangeira produz efeitos no Brasil sem homologação prévia do STF, é juridicamente acertada e constitucionalmente necessária. Ela reafirma:

a supremacia da ordem jurídica brasileira sobre litígios transnacionais;
a vedação de que municípios atuem como representantes internacionais do país sem autorização da União;
a necessidade de preservar a política externa, a segurança jurídica e a integridade federativa.

Ao exigir esse controle institucional, o STF evita a fragmentação da representação brasileira e impede que interesses privados — inclusive de grandes fundos internacionais — se sobreponham ao interesse público.

Reparações pela via inglesa só devem ocorrer a partir de 2029

Apesar do reconhecimento, pelo tribunal inglês, de elementos de responsabilidade da BHP, a reparação efetiva ainda está distante.

O cronograma é claro:

a BHP já anunciou que irá recorrer;
a etapa seguinte do julgamento está prevista apenas para janeiro de 2027;
com novas fases processuais, prazos e possíveis controvérsias, qualquer pagamento às vítimas só deve ocorrer após 2029.

Enquanto isso, no Brasil, as reparações já estão acontecendo.

O Programa de Indenização Definitiva (PID), homologado pelo STF:

já destinou mais de R$ 14 bilhões;
alcançou aproximadamente 288 mil pessoas;
opera sob supervisão judicial e institucional.

A comparação é inevitável: a via estrangeira ainda não entregou uma única indenização; a via brasileira já reparou centenas de milhares de atingidos. Não à toa, o governo brasileiro apresentou esse modelo na COP30.

Menos vítimas reconhecidas, menos indenizações — e maior retorno ao financiador estrangeiro

A Justiça inglesa reconheceu que diversas vítimas já foram reparadas no Brasil. Isso deve levar à exclusão de milhares de pessoas da ação coletiva no Reino Unido.

Essa exclusão produz três efeitos diretos:

reduz o número de “claimants” aptos a integrar o processo;
diminui o valor global das indenizações possíveis;
eleva a participação proporcional do financiador responsável por aportar capital bilionário à ação.

Segundo reportagens internacionais, advogados e financiadores podem receber até 30% do valor final do litígio.

Isso gera um paradoxo preocupante:

Vítimas que abriram mão de indenizações no Brasil, acreditando em uma via mais vantajosa no exterior, podem terminar recebendo menos — e com atraso de anos.

Enquanto isso, o principal beneficiado pelo enxugamento da lista de vítimas é justamente o investidor, cuja remuneração depende diretamente do montante final da ação.

A promessa da ação coletiva internacional ruiu

O escritório Pogust Goodhead, que liderou a captação de vítimas brasileiras, prometia:

indenizações rápidas;
valores superiores aos pagos no Brasil;
e uma suposta “justiça mais rigorosa” no Reino Unido.

A realidade, porém, contradiz o discurso:

nenhuma indenização foi paga pela via estrangeira até hoje;
o fundador, Tom Goodhead, foi afastado após pressões do próprio financiador;
o processo enfrenta críticas por falta de transparência, fragilidade de governança e conflitos de interesse;
milhares de vítimas permanecem sem clareza sobre direitos, prazos ou perspectivas reais de resolução.

O resultado é uma ação internacional que foi posta como alternativa mais eficiente, mas que, quase uma década depois, continua sem entregar reparação efetiva.

O modelo brasileiro

Na COP30, o Brasil apresentou o novo Acordo do Rio Doce como uma via de reparação e governança socioambiental, destacando:

governança compartilhada;
monitoramento estruturado;
participação social qualificada;
múltiplas camadas de reparação;
controle judicial e institucional contínuo.

O modelo brasileiro está sendo reconhecido como uma alternativa a ser seguida em casos semelhantes e futuros.

Conclusão: soberania, pragmatismo jurídico e proteção das vítimas

O litígio internacional pode ser um instrumento legítimo de responsabilização. Mas não quando:

fragiliza a soberania nacional;
submete vítimas a interesses financeiros estrangeiros;
gera expectativas irreais;
e, após quase dez anos, não produziu reparações concretas.

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Ao apresentar na COP30 o novo modelo de reparação do Rio Doce, o governo brasileiro sinaliza ao mundo que há um caminho institucionalmente sólido para tratar desastres dessa magnitude.

Agora, o debate precisa avançar para um ponto essencial: proteger as vítimas de falsas promessas, reforçar a soberania jurídica brasileira e impedir que financiadores internacionais transformem tragédias humanas em ativos especulativos.

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