Direitos da personalidade e teoria das affordances: uma provocação

A teoria das affordances é uma das grandes construções intelectuais da psicologia ecológica na década de 1970, a partir do trabalho de James J. Gibson, tendo exercido forte influência, a partir da década de 1980, nos estudos de interação humano-computador (HCI), na ciência da computação e nos estudos de design.

Nos estudos de teoria do direito, essa tradição permanece pouco explorada, com exceção de trabalhos como o da filósofa do direito computacional Mireille Hildebrandt, autora dos excelentes livros Smart Technologies and the End(s) of Law e Law for Computer Scientists and Other Folk.

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A teoria das affordances merece ser explorada com seriedade pelos estudiosos do direito, em especial os interessados na intersecção entre direito e tecnologia. Nosso objetivo, neste curto ensaio, é oferecer uma pequena explicação sobre a origem do conceito de affordances e o modo como ele é valioso para uma problematização do campo dos direitos da personalidade, algo que abordamos, mesmo que indiretamente, em nossos livros (Algoritmos e proteção de dados pessoais e A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil, ambos publicados em 2023).

As affordances não são propriedades de um objeto, mas sim uma relação entre ambiente e um ser que determina as possibilidades de ação (ou limitação da ação, o que é chamado de anti-affordance ou constraint). Um olhar atento a essas relações permite discutir como infraestruturas sociotécnicas são desenhadas para estruturar padrões de ação, de percepção e de comportamento. Argumentamos que estudar as affordances nos permite uma concepção pragmática de possibilidades e restrições de ações que afetam os direitos da personalidade.

Para leitores especializados em teoria das affordances, como designers e cientistas da computação, pedimos desculpas antecipadamente pela simplificação teórica que faremos neste texto. Para leitores que não possuem conhecimento sobre o conceito, esperamos que este breve ensaio sirva como guia para aprofundamento futuro e novas lentes de análise, passando pela indispensável leitura de James Gibson e Donald Norman.

Partimos do pressuposto, identificado por Julie Cohen, que juristas, especialmente os que estudam privacidade e proteção de dados pessoais, possuem pouco conhecimento sobre as inovações metodológicas da teoria das affordances. Cohen alerta que não há, ainda, um grande esforço de conceitualizar discursos jurídicos a partir da incorporação das noções de constraints e affordances como “pilares conceituais”.

Origens do conceito de affordances

Para compreendermos adequadamente o conceito de affordances, precisamos retornar ao trabalho seminal de James Gibson, que influenciou enormemente o trabalho de Donald Norman nos estudos de design e experiência do usuário da década de 1980.

James Gibson dedicou décadas de pesquisa à percepção visual, construindo uma nova teoria sobre o que podemos fazer com as coisas que estão ao nosso redor. Seu primeiro trabalho de fôlego sobre percepção visual foi The Perception of the Visual World (1950), rejeitando a ideia de que entradas sensoriais seriam convertidas em percepções por operações da mente, em prol de uma abordagem do modo como o sistema de percepção coleta (“pick up”) informações significativas, presentes nos ambientes e artefatos, que especificam possibilidades de comportamento. Uma síntese de suas pesquisas científicas foi oferecida no livro The Ecological Approach to Visual Perception (1979).

Um dos pontos de partida de Gibson é o modo como os organismos estão em constante processo de extração de informação do ambiente, estabelecendo relações adaptativas. Ele observou que, ao passo que um ambiente sempre está repleto de informações (o ambiente é o “entorno de organismos que percebem e se comportam”), nosso corpo estabelece uma relação adaptativa, identificando as affordances de um objeto.

Assim, quando um indivíduo percebe uma escada, não está apenas reconhecendo propriedades físicas (altura, profundidade, material), mas também a possibilidade de escalá-la dada sua própria morfologia e habilidades; quando observa uma maçaneta, percebe a possibilidade de pegá-la e girá-la na medida em que dispõe das competências motrizes necessárias. Em termos pragmáticos, portanto, affordances descrevem action possibilities que emergem da interação entre ambiente e organismo.

As affordances são possibilidades de interação ou ação providas (ou propiciadas) a seres animados. Para a teoria de Gibson, não há ambiente sem seres vivos, do mesmo modo que não há seres vivos sem ambiente. No campo de design e interação humano-computador, Donald Norman apropriou-se do termo, reinterpretando-o para enfatizar as pistas perceptivas que permitem a um agente (humano ou, em alguns usos contemporâneos, agentes artificiais) reconhecer como um objeto pode ser usado.

Norman introduziu a noção de perceived affordances — isto é, as affordances conforme percebidas e utilizadas como guias de ação pelo designer —, o que o tornou particularmente influente no design de interfaces e produtos.

A teoria das affordances permite criar subconceitos que explicam as relações entre seres, ambientes e objetos. Por exemplo, para Gibson, animais precisam de superfícies estáveis para se locomover, além de sua própria motricidade. Quando essa superfície existe, podemos dizer que as superfícies “apoiam a locomoção” pelos animais apropriados. Gibson chama isso de uma affordance de supportability, que passa a existir pela relação entre os arranjos materiais naturais (os arranjos de superfície) e o tamanho e capacidade de animais específicos.

Donald Norman, nos estudos de design, promoveu esse conceito gibsoniano de affordance como um constructo que ajuda a explicar as possibilidades (ou oportunidades) de ação que são providas em um ambiente, em relação com seres vivos. Em “The Design of Everyday Things”, ele utiliza o conceito de affordances como “a relação entre o objeto físico e a pessoa (ou agente de interação)”. Em outras palavras, “a relação entre as propriedades de um objeto e as capacidades de um agente que determinam como o objeto poderia ser usado”.

A palavra affordance pode soar estranha a muitos ouvidos de juristas, pois ela foi inventada por Gibson em um trabalho sofisticado em termos filosóficos e amplamente debatido até hoje em muitas áreas científicas.

Qual é a relevância da teoria das affordances para o Direito?

A esta altura nosso leitor pode estar se perguntando: “mas, afinal, por que falar em possibilidades de ação e relação entre ambiente e agente no contexto jurídico atual?”. A resposta ao questionamento passa por dois argumentos fundamentais: (i) a mudança do paradigma de relação humano-tecnologia, que deixa de ser apenas de uso e se torna de imersão; e (ii) a eficácia de tecnologias no comportamento de sujeitos socialmente situados.

Se antes a tecnologia era eminentemente usada como instrumento – por exemplo, óculos, motocicletas, televisão, telescópios, martelos e aparelhos auditivos –, as tecnologias mais recentes organizam cada vez mais relações humano-tecnologia que não podem mais ser caracterizadas como configurações de “uso”.

Se considerarmos as atuais tecnologias e infraestruturas digitais que estão sendo desenvolvidas com múltiplos sensores e as interfaces com que estão sendo implementadas – a exemplo de sistemas de reconhecimento facial, Internet das Coisas, smart grids, carros (semi)autônomos, assistentes pessoais –, observa-se uma configuração que Peter Paul-Verbeek chama de imersão: “aqui, as pessoas estão imersas em “ambientes inteligentes” que reagem de forma inteligente à sua presença e atividades”.

Já vimos como Norman empregou a noção de affordance na perspectiva humano-máquina para explicar a relação entre as propriedades de um objeto e as capacidades de um agente que determinam como o objeto pode ser usado. Em leitura mais atual e responsiva às críticas formuladas à teoria das affordances – advindas até mesmo do próprio Norman em breve ensaio publicado em 2008 –, pode se definir affordances como “a ‘estrutura relacional multifacetada’ entre um objeto/tecnologia e o usuário que possibilita ou restringe os potenciais resultados comportamentais em um contexto específico” (argumento de Evans et al. em “Explicating Affordances”).

De forma mais didática, a professora Jenny L. Davis leciona que, em síntese, affordances dizem respeito a como objetos moldam, e não determinam, a ação de sujeitos socialmente situados.

Nesse sentido, o conceito dá conta de como a tecnologia afeta a ação ou o comportamento de agentes humanos. Por exemplo, no modelo teórico proposto por Jenny Davis, em que o enfoque é em como tecnologias possibilitam e restringem comportamentos, analisam-se os mecanismos de como as tecnologias solicitam, exigem, incentivam, desencorajam, recusam e permitem a ação.

A partir dos dois elementos argumentativos acima, entendemos que a teoria da interpretação jurídica contemporânea deve ser articulada, à luz do atual paradigma tecnológico da imersão, não apenas com a normatividade jurídica, mas também com a eficácia das tecnologias sobre a ação e o comportamento humanos, ou seja, suas affordances.

Direitos da personalidade, interpretação e aportes da teoria das affordances

Teoria e prática dos direitos da personalidade foram profundamente afetados pelos avanços tecnológicos no durante o século 20. Tal realidade continua se aprofundando hoje, na era da ubiquidade computacional e da IA. Isso pode ser constatado a partir das tensões existentes entre a tutela da imagem e aplicações de deep fakes e redes sociais de compartilhamento de vídeos gerados por IA (como Sora, da OpenAI); o mesmo podendo ser dito em relação ao direito à privacidade e os novos desafios ensejados por neurotecnologias impulsionadas por técnicas de IA.

Uma promissora aplicação da teoria das affordances para a proteção e promoção de direitos da personalidade no ambiente digital se dá a partir da articulação entre desenvolvimento e design tecnológico e tutela preventiva desses direitos.

Na lição de Jenny Davis, uma das formas de operacionalizar o conceito é perquirir, desde a fase de concepção e ao longo do desenvolvimento da tecnologia, como comportamentos são possibilitados ou restringidos. Analisam-se os mecanismos de como as tecnologias solicitam, exigem, incentivam, desencorajam, recusam e permitem uma linha de ação, bem como as condições e circunstâncias em que isso se dá.

Essa articulação deve promover a compatibilização entre o sistema tecnológico e os preceitos jurídicos de tutela da personalidade humana. Exemplos claramente previstos no nosso ordenamento jurídico são: (i) o princípio da proteção de dados desde a concepção (LGPD, arts. 6º, VIII e 46, caput e § 2º); e (ii) os deveres dos fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia da informação direcionados a crianças e a adolescentes ou de acesso provável por eles de, desde a concepção de seus produtos e serviços, garantir, por padrão, a configuração mais protetiva disponível em relação à privacidade e à proteção de dados pessoais, e de abstenção de realizar tratamento de dados pessoais de forma de cause, facilite ou contribua para a violação a direitos do público infantojuvenil (ECA Digital, art. 7º, caput e § 2º).

Nessa linha, podemos pensar no exemplo de uma plataforma digital – qualificada como serviço de tecnologia da informação de acesso provável a crianças e adolescentes – que permite o uso não consentido da imagem-retrato ou voz de alguém e desencoraja remoção de vídeos não estabelecendo mecanismos claros de notificação ou denúncia. A tecnologia possui em relação aos seus usuários possibilidades de ação que muito provavelmente colidem com o direito de imagem (CC, art. 20; ECA, art. 17) e restringem o seu exercício.

Considerações finais

A teoria das affordances oferece ao Direito uma lente conceitual capaz de apreender, de modo simultaneamente relacional, material e situado, a forma como as possibilidades de ação humana são estruturadas por ambientes técnicos.

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Mais do que um conceito descritivo, as affordances operam, para a dogmática contemporânea, como uma espécie de “método de investigação jurídica” relevante para a interpretação e aplicação do Direito. Elas permitem compreender as condições materiais, institucionais e técnicas para a tutela e promoção de direitos da personalidade.

Trata-se de aporte teórico que merece ser explorado como abordagem metodológica aplicável aos direitos da personalidade porque permite ao intérprete articular (i) a normatividade jurídica, (ii) a materialidade técnica das infraestruturas digitais e (iii) os comportamentos de sujeitos socialmente situados em relação com os ambientes. Essa tríade oferece ao jurista uma gramática mais precisa para compreender como a personalidade é, hoje, simultaneamente protegida, moldada e vulnerabilizada por arquiteturas tecnológicas e suas possibilidades de ação.

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