A PEC 65/2023 avança pela discussão pública com ares de modernização institucional, como se colocasse o Brasil em sintonia com práticas internacionais. A retórica é elegante: autonomia financeira plena, afastamento de contingenciamentos, salários competitivos, blindagem contra interferências políticas.
Contudo, como demonstrei em artigo publicado pela Brazilian Keynesian Review, a proposta repousa sobre premissas frágeis e ignora a arquitetura específica que sustenta a política monetária e a gestão da dívida pública no país. Trata-se de uma solução que não apenas deixa sem resposta os problemas reais, mas cria outros de maior envergadura.
O primeiro equívoco é estrutural. A PEC 65 afirma que transformar o Banco Central em empresa pública seria requisito para garantir a plena execução de suas funções por meio de maior autonomia financeira. No entanto, esse argumento é falso: o orçamento administrativo do BC — aquele sujeito à Lei Orçamentária Anual — representa apenas uma parte de sua estrutura de financiamento.
O coração operacional do órgão, no que tange o cumprimento das políticas econômicas a seu cargo, reside no orçamento da Autoridade Monetária (OAM), aprovado pelo Conselho Monetário Nacional, já fora do alcance das restrições orçamentárias usuais, conforme dispõe a Resolução CMN 5.090/2023. Não há, portanto, ameaça concreta às atribuições do BC que justificaria um redesenho constitucional tão profundo.
A narrativa do “derretimento” institucional também carece de base factual. A perda líquida de servidores que migrariam voluntariamente para o setor privado seria mínima, incapaz de justificar a dramatização que permeia o debate público. Como exemplo, entre 2016 e 2023 o órgão perdeu 911 servidores. Desse total, 615 se aposentaram ou faleceram (Valor, 2024).
Em termos líquidos, apenas 296 deixaram o Banco Central por iniciativa própria, sem que seja possível afirmar que a motivação foram salários mais altos no mercado financeiro. Ainda que esse argumento fosse aceito, essa saída anual representaria cerca de 1% do quadro atual, o que não sustenta a tese de “derretimento” institucional.
Quanto a este aspecto específico, o problema central não está na remuneração inadequada dos servidores, mas é fruto da política fiscal brasileira dos últimos anos, que restringiu concursos e achatou quadros em todo o funcionalismo público. Transformar o BC em empresa pública não resolveria esse problema de origem — mas abriria uma avenida para a captura institucional por interesses privados, como alertam diferentes ex-presidentes e ex-diretores do próprio órgão, assim como para a recorrente confusão entre público e privado no país.
O próprio poder de polícia exercido pelo BC poderia ser também fragilizado, como apontou Rodrigo Monteiro, pois a mudança para entidade de natureza privada poderia comprometer a autonomia técnica dos servidores e diluir a responsabilidade pública inerente à supervisão financeira.
Ainda mais grave é a negligência da PEC 65 em relação ao sistema em que o BC opera: a estrutura do mercado Selic, que une operações do mercado monetário e o de dívida pública desde os anos 1980, criando uma institucionalidade única no mundo. Nele, títulos públicos funcionam praticamente como moeda, operações compromissadas de curtíssimo prazo tornaram-se o mecanismo dominante de gestão monetária.
A taxa Selic — originalmente instrumento para controlar a inflação — converteu-se no piso de remuneração da dívida pública. Essa engrenagem gera um círculo vicioso de juros altos, preferência absoluta por aplicações de liquidez imediata e um custo de dívida cada vez mais oneroso para o Estado brasileiro.
Negligenciar esse arranjo é ignorar o centro nervoso da interação entre política fiscal e monetária no Brasil. Ao propor que o BC se transforme em empresa pública com autonomia financeira total, a PEC ignora que o alcance da política monetária se faz por meio de títulos públicos do Tesouro Nacional, o que denota a interdependência entre os órgãos. Ainda pior, faz isso sem apresentar qualquer desenho institucional compatível com o peso que o próprio BC exerce sobre o perfil, o custo e a maturidade da dívida pública federal.
A justificativa da PEC recorre ainda ao argumento de que o Banco Central deveria se financiar com receitas de senhoriagem, reproduzindo uma suposta experiência internacional. Esse argumento, contudo, beira o anacronismo, como demonstrado por artigo recente publicado por Camila V. Duran e Edna Velho. Senhoriagem é receita pública, não receita da instituição que a arrecada por meio de delegação do Estado, que é o único detentor do poder soberano monetário.
Também não procedem certas comparações internacionais. Importar modelos institucionais exige compreender o ecossistema econômico que os sustenta. A institucionalidade do Selic, com a predominância de operações compromissadas que representam mais de 10% do PIB, não tem equivalente em países citados por defensores da PEC.
Antes de emular estruturas estrangeiras, seria necessário corrigir as distorções domésticas que mantêm a política monetária excessivamente dependente de instrumentos de curtíssimo prazo — distorções que identifico como resquícios de um sistema desenhado para enfrentar a hiperinflação.
O efeito agregado da PEC é, portanto, paradoxal. Ao mesmo tempo em que promete “independência”, fragiliza a capacidade de coordenação entre Tesouro Nacional e Banco Central — coordenação indispensável num país em que a gestão monetária influencia diretamente o volume, o custo e o perfil de toda a dívida pública.
Ao prometer modernização institucional, obscurece o debate sobre a reforma de que realmente necessitamos: a reestruturação da política monetária e da gestão da liquidez. Essa reforma é essencial para reduzir a dependência de operações compromissadas e reconstruir o canal de transmissão da política de juros, que atualmente funciona de maneira distorcida.
Se há urgência institucional, ela está em outro ponto: a necessidade de enfrentar o absurdo que Edmar Bacha já denunciava em 1994, quando afirmava que o país não poderia sustentar indefinidamente a recomposição automática e diária da liquidez bancária via títulos públicos.
Três décadas depois, seguimos presos à lógica que o Plano Real pretendia superar. A PEC 65, longe de contribuir para essa reforma, distrai o debate público com uma solução institucional que desconhece — ou escolhe ignorar — o funcionamento real do sistema monetário brasileiro.
O país não precisa de um BC-empresa. Precisa de um banco central inserido num arcabouço institucional coerente, capaz de alinhar política monetária e gestão da dívida pública sem agravar os desequilíbrios dos quais já padecemos. A modernização que interessa é aquela que enfrenta a engrenagem que reproduz juros altos, dívida cara e pouca eficiência econômica — não a que reinventa estruturas jurídico-formais para problemas que não existem. Trata-se de preservar uma arquitetura institucional que se mantém distante de interesses privados, condição indispensável para a adequada execução de sua função pública.