Foi notícia recente, no último dia 20, que o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) foi visto em um condomínio de luxo em Miami, nos Estados Unidos. Condenado como um dos cabeças da trama golpista que desaguou no 8 de Janeiro, ele teria cruzado a fronteira brasileira por Roraima e de lá tomado um avião com passaporte diplomático de parlamentar, vez que seus passaportes comuns foram cancelados por ordem do STF.
Ele não foi o único a tentar refúgio em solo norte-americano: em 17 de março deste ano quatro mulheres envolvidas no 8 de Janeiro conseguiram atravessar a fronteira após um longo périplo entre países das Américas do Sul e Central. Porém, logo foram capturadas, encaminhadas ao serviço migratório, inclusive com algumas delas já deportadas e presas no Brasil.
Outros países foram escolhidos como destino. A Argentina tem mais de 60 foragidos condenados pelo 8 de Janeiro presos após o envio de uma lista pelo STF. Os casos estão sendo processados e, em breve, a justiça federal de primeira instância daquele país decidirá se essas pessoas serão devolvidas ao Brasil para cumprirem suas penas.
Como já opinei anteriormente[1], os crimes contra o Estado democrático de Direito, previstos no título XII do Código Penal, e pelo qual os foragidos foram condenados pelo STF, deveriam ser considerados “crimes políticos” para fins de extradição: na relação Brasil-Argentina, isso ocorre pelas vedações constitucionais expressas no ordenamento jurídico e pelo tratado firmado para este fim entre os dois países, além da semelhança entre o art. 359-L de nosso Código Penal e o art. 226 do código penal argentino. A questão que se coloca é: a mesma lógica se aplica nas relações entre EUA e Brasil?
Algumas semelhanças e diferenças são notáveis. Uma diferença: diversamente do caso brasileiro, em que há disposição específica sobre extradição entre países, a constituição estadunidense prevê apenas o mecanismo de extradição interestadual, que não se aplica ao caso. Uma semelhança: ambos os países preveem crimes semelhantes contra as instituições democráticas, o Brasil nos arts. 359-L e 359-M do CP, e os EUA, no 18 U.S. Code § 2383[2].
Agora, a particularidade que parece ser decisiva é o modelo de tratado. A maioria dos tratados assinados pelo Brasil tem como formato cláusula geral, ou seja, em princípio todos os crimes seriam passíveis de extradição, salvo expressas exceções, como crimes com pena menor de um ano, crimes militares e outras ressalvas.
O tratado de extradição entre EUA e Brasil, de 1961[3], semelhante aos primeiros tratados internacionais sobre o tema, típicos do século 19[4], prevê em seu artigo II um rol taxativo de crimes passíveis de extradição.
Analisando as 32 hipóteses (além da permissão de entrega em crimes tentados e de mera participação), nenhuma delas se enquadra nos delitos pelos quais os envolvidos na trama golpista e no 8 de Janeiro foram condenados. Nem os crimes contra o Estado, nem os delitos associativos; e, no caso de dano, a disposição da alínea “8” parece mais se assemelhar ao delito de sabotagem, pois tem requisitos diversos, como risco às pessoas[5].
Mas, ainda que se aceitasse tal enquadramento, teria que se enfrentar os casos de vedação previstos no artigo V. Ali provavelmente será ocasião de enfrentar a alínea “6”, que trata dos crimes políticos. Isso significa que, uma vez os delitos de rebelião ou insurreição (equivalente à tentativa de abolição do estado democrático) não estão presentes no rol do artigo II vale, portanto, de forma tácita, a concepção subjetiva de crime político: essa qualidade do delito não é verificada pela análise dos tipos penais, mas pelo dolo (no caso da tradição do common law, nos EUA, o mens rea). Assim, uma das condições para a entrega do extraditando será a execução da pena apenas para os delitos presentes na lista, ou seja, o dano ao patrimônio público.
Conforme o item “a” da alínea “6”[6], poderia se desconsiderar o caráter político da conduta se o crime for predominantemente comum. Para isso, teria que se entender que os atos de depredação do 8 de Janeiro não teriam como fim principal a tentativa de golpe de estado, como descrito nas condenações tanto das quatro mulheres que se encontravam em Brasília.
Já o caso do item “b”[7] é peculiar, porque foi pensado, como ainda aparece expressamente descrito, para o anarquismo. Seria muito inusitado enquadrar um movimento de direita ser equiparado a tal corrente política, pois o “antissistema” anárquico é exatamente refratário a “deus, pátria, família” como valores.
Por fim, é importante mencionar a regra do item “c”: “a apreciação do caráter do crime ou delito caberá exclusivamente às autoridades do Estado requerido”. Tradicional em todos os tratados que possuem a cláusula de exceção dos crimes políticos, indica que serão os EUA (por meio de seus juízes federais de primeira instância[8], como na Argentina) que decidirão pela devolução ou não dos condenados ao Brasil.
No caso do deputado, que foi atribuído como um dos líderes da organização, lembre-se que a ação penal foi parcialmente suspensa no que diz respeito aos atos posteriores ao início do mandato, ou seja, exatamente os delitos de dano cometidos no 8 de Janeiro.
Desta forma, sem condenação referente a este crime, parece faltar causa para um pedido de extradição até que esta parte do processo volte a tramitar, pois ainda que não seja necessário o fim da ação penal para a tramitação do pedido, não faz sentido fazê-lo enquanto aquela estiver parada.
Em resumo:
Brasil e EUA possuem crimes contra o Estado semelhantes em suas legislações penais, que podem ser lidos como crimes políticos, e o tratado de extradição entre estes países possui a vedação de entrega de criminosos com tal caráter;
Todavia, o rol taxativo de delitos passíveis de extradição neste tratado não inclui os crimes pelos quais os envolvidos na trama golpista e no 8 de Janeiro foram condenados;
O “dano”, único delito da lista que poderia ser virtualmente enquadrado, parece ter requisitos mais rígidos no tratado do que na legislação brasileira;
Uma vez que os crimes contra o Estado não fazem parte do rol do tratado, os EUA poderiam entender, caso ultrapassassem a limitação da equivalência do crime de dano, que ele teria como móvel uma finalidade política, impedindo a extradição;
Seria possível os EUA aplicarem as exceções ao reconhecimento do caráter político do delito, mas seria contraditório com a acusação imputada e aceita nas condenações no Brasil, assim como com a ideologia política do grupo perseguido criminalmente; e
O caso do deputado Ramagem é diferente daquele da maioria dos foragidos por conta do 8 de Janeiro porque a ação penal dele no que se refere ao crime de dano está suspensa em virtude de estes fatos terem ocorrido após o início de seu mandato parlamentar, de modo que até o retorno do trâmite desta fração da acusação não haveria causa para o requerimento de sua extradição.
[1] NUNES, Diego. NUNES, Diego. Crimes contra o Estado de Direito serão crimes políticos para fins de extradição? JOTA, 28/06/2024.
[2] “18 U.S. Code § 2383 – Rebellion or insurrection: Whoever incites, sets on foot, assists, or engages in any rebellion or insurrection against the authority of the United States or the laws thereof, or gives aid or comfort thereto, shall be fined under this title or imprisoned not more than ten years, or both; and shall be incapable of holding any office under the United States”.
[3] Internalizado no Brasil pelo Decreto nº 55.750, de 11 de fevereiro de 1965.
[4] Diego Nunes, Extradition and Political Crimes in the ‘International Fight against Crime’: Western Europe and Latin America, 1833–1933, in Karl Härter, Tina Hannappel & Jean Conrad Tyrichter (org.). The Transnationalisation of Criminal Law in the Nineteenth and Twentieth Century. Political Crime, Police Cooperation, Security Regimes and Normative Orders. Frankfurt: V. Klostermann, 2019, p. 41-64.
[5] “ARTIGO II. Serão entregues, de acôrdo com as disposições do presente Tratado, para serem processados quando tiverem sido inculpados, os indivíduos que hajam cometido qualquer dos seguintes crimes ou delitos: […] 8. Dano doloso e ilegal, em estradas de ferro, trens, embarcações, aeronaves, pontes, veículos, e outros meios de transporte ou em edifícios públicos ou privados, ou em outras estruturas, quando o ato cometido puser em perigo a vida humana”.
[6] “ARTIGO V. Não será concedida a extradição em qualquer das seguintes circunstâncias: […] 6. Quando o crime ou delito, que ocasionou o pedido de extradição, fôr de caráter político. Entretanto: a) A alegação, pelo indivíduo reclamado, de que o pedido de sua extradição tem fim ou motivo político, não impedirá a entrega do extraditando se o crime ou delito, que justifica o pedido de extradição, fôr principalmente uma infração da lei penal comum. Em tal caso, a entrega do extraditando ficará dependente de compromisso, da parte do Estado requerente, de que o fim ou motivo político não concorrerá para agravar a pena”
[7] “ARTIGO V. […] 6. […] b) os atos delituosos que constituem francas manifestações de anarquismo ou visam à subversão da base de tôda organização política não serão reputados crimes ou delitos políticos”.
[8] Sobre o caráter claudicante da jurisprudência acerca da concessão ou não de extradição diante da necessidade do exame do caráter político do delito, ver p.ex. David M. Lieberman, in
Sorting the revolutionary from the terrorist: the delicate application of the “political offense” exception in U.S. extradition cases, in 59 STAN. L. REV. 181 (2006), p.181-212; James G. Clark, Political Offenses in Extradition: Time for Judicial Abstention, 5 HASTINGS INT’L & COMPAR. L. REV. 131 (1981); J. Reuben Clark, Jr., Frederic R. Coudert & Julian W. Mack. The nature definition of political offense in international extradition, in Proceedings of the American Society of International Law at Its Annual Meeting (1907-1917), Vol. 3 (April 23-24, 1909), Cambridge University Press, pp. 95-165.