O PL 4675/2025 foi apresentado como o principal instrumento do governo brasileiro para regular economicamente plataformas digitais como Google, Meta, Amazon, Apple e iFood. Na prática, porém, o projeto aposta na capacidade do Estado de prever, ordenar e dirigir mercados que ele próprio ainda não entende plenamente.
Seu eixo central é a ideia de que algumas plataformas seriam tão grandes e tão influentes que exigiriam um regime especial — plataformas com “relevância sistêmica”. É a partir desse selo que o governo quer interferir em algoritmos, fluxos de dados, sistemas de pagamento, integrações internas e modelos de negócio.
Mas é justamente sobre esse selo que algo importante passou despercebido. Não por descuido, mas por escolha. O conceito que sustenta todo o PL — a “relevância sistêmica” — é propositalmente aberto. E isso não é apenas a crítica de opositores: é diagnóstico do próprio governo. Em parecer interno obtido via Lei de Acesso à Informação, a Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça afirma de forma explícita que o conceito é “vago” e “incapaz de conferir segurança jurídica”.
Essas críticas jamais teriam vindo a público não fosse a insistência jornalística. O Executivo sabe da fragilidade conceitual do alicerce do PL 4675, mas optou por não mencionar isso. O texto da Fazenda não estabelece critérios claros para diferenciar uma empresa comum de uma plataforma sujeita ao regime especial.
Ainda assim, o que o público ouviu foi outra narrativa: enquanto técnicos alertavam para a falta de limites e definições, o ministro Fernando Haddad e os secretários Marcos Pinto e Dario Durigan falavam em maturidade regulatória, soberania e defesa da concorrência.
A própria Secretaria de Direitos Digitais também criticou o projeto. Para a pasta, o PL carece de mecanismos robustos de participação e transparência. Mas suas sugestões foram suavizadas ou ignoradas — e nada disso foi comunicado. O que veio a público é apenas o que já havia sido filtrado internamente.
No fim das contas, o PL dos Mercados Digitais — ou PL da Regulação da Internet, como poderíamos chamar — desloca o sistema brasileiro de defesa da concorrência. Tira-o de um modelo baseado em condutas e evidências e o empurra para um sistema de presunções, transformando o Cade, na prática, numa agência reguladora setorial sem contrapesos adequados.
A falta de definição não é detalhe. É o que abre espaço para que o Cade, sob a nova estrutura, possa designar uma plataforma como “sistêmica” com base em critérios amplos — e, a partir daí, impor obrigações preventivas, reescrever políticas internas e intervir em modelos de negócio mesmo sem prova de abuso.
E quando essa intervenção se estende a algoritmos, fluxos de dados e critérios de visibilidade, as implicações deixam de ser apenas econômicas e passam a ser democráticas. Interoperabilidade forçada, limites à autopreferência e compartilhamento compulsório de dados podem reorganizar completamente o que ganha alcance — ou desaparece — no ambiente digital.
O impacto econômico acompanha esse risco. A combinação de obrigações automáticas, pré-notificações universais e intervenção contínua gera insegurança, desestimula investimentos e retrai o lançamento de novos produtos. Empresas médias podem até evitar crescer para não cruzar um limiar nebuloso que as tornaria “sistêmicas” — um incentivo perverso para qualquer ecossistema de inovação.
É por isso que o episódio da LAI importa tanto. Em muitos países, seria um escândalo. Ele mostra que o problema não é apenas técnico; é também de transparência. O governo pediu ao país que aceitasse uma mudança estrutural no equilíbrio entre Estado e sociedade enquanto escondia que, internamente, reconhecia falhas conceituais básicas.
Antes de conceder poderes extraordinários a uma nova Superintendência de Mercados Digitais, algumas perguntas simples precisam de resposta. Qual é o propósito deste projeto de lei? O que, exatamente, define uma plataforma sistemicamente relevante? Que lacuna o PL pretende preencher que a Lei Geral de Proteção de Dados, o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei de Defesa da Concorrência já não tratem?
Enquanto essas respostas não vierem — e não dependerem de novas LAIs para aparecer — o projeto continuará sendo objeto de desconfiança.