Governo quer acelerar integração global do carbono e vê COP como oportunidade

Criada recentemente e vinculada ao Ministério da Fazenda, a Secretaria Extraordinária do Mercado de Carbono tornou-se o centro das decisões que vão definir se o Brasil conseguirá, de fato, assumir liderança global na regulação do carbono. À frente do desenho do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), Cristina Reis tomou posse em 6 de outubro e, dias depois, já desembarcou na COP30 para apresentar a proposta brasileira de uma coalizão internacional de mercados de carbono. Em entrevista exclusiva ao JOTA, ela detalha a estratégia, os desafios regulatórios, as oportunidades econômicas e os riscos de reputação caso o mercado não avance no ritmo prometido.

Segundo ela, o momento é crucial: “O Brasil abriu uma janela estratégica para liderar a integração global do carbono, mas essa liderança depende de entregarmos o SBCE no prazo”, afirma. O governo quer usar o ambiente político da COP para acelerar a interoperabilidade com outros países, ampliar a liquidez para créditos brasileiros e consolidar o país como ator central na agenda climática.

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Mas o plano só funciona se o cronograma for cumprido. Um atraso, diz Cristina, pode afetar a credibilidade internacional justamente no momento em que o Brasil tenta ocupar esse espaço. Confira abaixo a entrevista completa.

A sra. assumiu que o cronograma da lei exige decisões estruturais até o fim de 2026 — gases regulados, setores incluídos, regras de MRV, registro. Qual é hoje o maior gargalo técnico para que o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões entre na fase piloto sem atrasos?

Hoje não há um gargalo técnico único, mas uma sequência de decisões de alta complexidade. O primeiro grande desafio é definir o escopo do sistema: quais gases de efeito estufa serão regulados, quais setores entram na primeira etapa e qual será o recorte das empresas — se será por instalação emissora, por atividade, por empresa ou pelo conjunto de fábricas.

A partir dessas escolhas, iniciamos todo o arcabouço: regras de monitoramento, relato e verificação (MRV), registro nacional, definição de metodologias de contabilidade de carbono e os critérios para que créditos do mercado voluntário possam se tornar Certificados de Redução Verificada (CRVs) no mercado regulado.

É uma tarefa multidisciplinar, que exige capacidade operacional, modelagem econômica e alinhamento internacional. O cronograma é apertado, e justamente por isso estamos acelerando desde o primeiro dia.

A sra. diz que o Brasil assumiu protagonismo ao propor a coalizão internacional de mercados de carbono diante da ausência dos EUA nas discussões climáticas. Que vantagens concretas o País ganha ao liderar um arranjo com União Europeia, China e outros grandes emissores? E que riscos regulatórios esse protagonismo traz?

Liderar essa coalizão traz vantagens diretas. O Brasil conseguiu articular União Europeia, China, Canadá, México, Chile, Reino Unido, Alemanha, França, Zâmbia, Armênia e Senegal em torno de um eixo comum de cooperação. Isso posiciona o país como referência técnica, amplia sua capacidade de atrair investimentos e aumenta a previsibilidade para nossos setores regulados.

Como os EUA não estão participando das grandes discussões climáticas, abriu-se um espaço diplomático que o Brasil conseguiu ocupar. Com isso, ganhamos centralidade no debate sobre interoperabilidade de sistemas, harmonização de metodologias, contabilidade de carbono e uso de offsets.

O risco é que cada país tem um nível de maturidade regulatória e desenhos muito diferentes. Harmonizar essas estruturas pode gerar tensões e requer cuidado para não comprometer a autonomia regulatória interna. Mas o Brasil está conseguindo equilibrar liderança e soberania.

A COP30 deve sair com alguma formalização adicional da coalizão. Que tipo de compromisso ou diretriz multilateral poderia, na prática, ampliar a liquidez e reduzir assimetria entre mercados regulados e voluntários?

Os compromissos que mais ampliam liquidez são aqueles relacionados a MRV, contabilidade de carbono e uso de offsets. Quanto mais comparáveis forem os sistemas nacionais, maior a confiança do investidor internacional — e, portanto, maior a liquidez.

A coalizão tem esse foco: alinhar princípios, compartilhar técnicas, trocar experiências sobre monitoramento e reduzir a assimetria entre mercados regulados. Também estamos tratando da integração técnica para permitir que mercados distintos utilizem metodologias compatíveis.

Considerando os acordos em negociação na COP30, quais já têm potencial imediato de expandir o mercado brasileiro — seja atraindo demanda externa para créditos nacionais, seja acelerando a integração de metodologias com outros sistemas?

Os acordos que discutem interoperabilidade de MRV, regras de contabilidade de emissões e qualificação de offsets são os que têm impacto mais imediato. Esses avanços aumentam a confiança nos créditos brasileiros e facilitam que grandes compradores internacionais incluam nossos projetos em seus sistemas de conformidade.

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A COP também funciona como vitrine: conseguimos mostrar a lei aprovada, a criação da secretaria e o plano de implementação. Isso já atrai atenção de países que querem integrar seus mercados ao nosso, o que expande demanda e traz previsibilidade.

A criação da Super Taxonomia nasce de iniciativas multilaterais e do Banco Central do Azerbaijão. Como o Brasil pretende evitar que essa interoperabilidade vire, na prática, uma padronização que restrinja as escolhas domésticas previstas no Plano de Transformação Ecológica?

A chamada Super Taxonomia não é um esforço de padronização global, e isso é essencial. Ela nasce como um conjunto de sete princípios multilaterais voltados à interoperabilidade, ou seja, para permitir que diferentes taxonomias nacionais possam ser comparadas, mas sem que nenhum país precise abrir mão de suas escolhas domésticas.

O primeiro princípio já deixa isso explícito: cada país deve preservar suas prioridades soberanas de desenvolvimento sustentável — seus setores estratégicos, suas tecnologias e sua visão social, ambiental e econômica. Não existe imposição de mudança de critérios ou alinhamento forçado.

No caso do Brasil, isso é especialmente importante porque nossa taxonomia inclui dimensões sociais que não aparecem em outras, como igualdade racial e de gênero, além de características da nossa matriz produtiva, da agricultura, da transição energética e das realidades regionais. A interoperabilidade não elimina essas diferenças: ela respeita e valoriza as particularidades nacionais.

Durante a COP, foi lançado um documento técnico internacional, além do site Taxonomy Roadmap e da ferramenta Global Mapper Tool, que permitem comparar critérios de mitigação, adaptação e sustentabilidade entre diferentes países. A intenção é dar transparência e clareza aos investidores, para que entendam como cada país estrutura sua taxonomia — não para uniformizar tudo.

No fundo, o objetivo da Super Taxonomia é facilitar a vida de quem investe e faz análise de risco, e não criar um modelo único. O Brasil participa desse processo justamente para garantir que nossas escolhas — inclusive as sociais — continuem valendo e sendo reconhecidas internacionalmente.

A sra. afirmou que o mercado de carbono será ferramenta de política industrial. Quais setores tendem a ganhar competitividade no curto prazo com o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões — e quais tendem a sentir mais pressão de custos na transição?

Para os setores intensivos em carbono, especialmente aqueles que emitem acima de 25 mil toneladas, a pressão será maior no curto prazo. Eles terão de estruturar rotas claras de descarbonização, e a definição das linhas de base será um desafio regulatório e econômico importante.

Por outro lado, setores que já produzem com baixa intensidade carbônica tendem a ganhar competitividade, porque a própria taxonomia e os critérios de sustentabilidade vão direcionar investimentos e capital para tecnologias mais limpas.

Além disso, o sistema de offsets abre oportunidades imediatas para agricultura, florestas, energias renováveis, resíduos e saneamento, que poderão ofertar créditos ao mercado regulado e se beneficiar economicamente da transição.

A lei estabelece que parte das receitas do mercado de carbono precisa ir para comunidades tradicionais. Como o Ministério da Fazenda pretende garantir que esse repasse seja direto, mensurável e não fique preso em regras orçamentárias que historicamente travam fundos socioambientais?

Esse é um dos pontos mais sensíveis da regulação. A lei já determina que uma parcela das receitas do mercado de carbono seja destinada às comunidades tradicionais, mas agora precisamos detalhar como isso será feito: para onde os recursos vão, qual será o modelo de governança e quais instrumentos vão garantir que o repasse seja direto, mensurável e efetivo.

Estamos trabalhando junto ao Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e à CONAREDD+ para construir marcos normativos claros, que assegurem a repartição de benefícios em diferentes tipos de arranjos — incluindo projetos jurisdicionais e concessões florestais.

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Nossa preocupação é exatamente evitar que esses recursos fiquem presos em mecanismos orçamentários que não respondem à realidade das comunidades tradicionais. A ideia é criar regras que garantam que o dinheiro chegue rapidamente, sem intermediários desnecessários e com transparência sobre como está sendo distribuído.

Se o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões atrasar — seja na fase piloto ou na distribuição onerosa de cotas — qual é o impacto esperado na credibilidade do Brasil dentro dessa coalizão internacional recém-proposta?

O risco maior é realmente reputacional. O Brasil apresentou um plano ambicioso, com metas públicas, um cronograma bastante detalhado e um posicionamento muito claro de que quer liderar a integração internacional dos mercados de carbono. Se houver atraso — seja na fase piloto, seja na etapa de distribuição onerosa das cotas — isso inevitavelmente gera desconfiança dentro da coalizão que o Brasil acabou de propor.

As empresas brasileiras também perdem, porque precisam de clareza regulatória para organizar suas estratégias de descarbonização, investimentos e preparação interna. O mercado de carbono só funciona com previsibilidade.

Estamos trabalhando para evitar qualquer atraso. Publicamos um plano de implementação completo, estruturamos as fases, e nossa meta é chegar à fase piloto no prazo. A credibilidade do Brasil nesse processo é um ativo econômico e político, e tratamos isso como prioridade absoluta — tanto para reforçar nossa posição internacional quanto para dar segurança às empresas que vão operar no SBCE.

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