Moratória da Soja como instrumento de governança privada e regulação híbrida

O agronegócio brasileiro, notadamente o setor sojicultor, constitui-se como um pilar da economia nacional, respondendo por expressiva parcela do Produto Interno Bruto (PIB) e das exportações. Contudo, sua expansão histórica, especialmente na região amazônica, gerou significativos passivos ambientais e conflitos com a legislação brasileira. Em resposta a críticas internacionais e ao risco iminente de barreiras comerciais não tarifárias, foi firmado em 2006 o acordo setorial intitulado Moratória da Soja.

Este instrumento, de natureza voluntária, transcende o caráter de mera autorregulação setorial, configurando-se como um paradigmático caso de regulação híbrida, onde atores privados assumem funções tradicionalmente estatais, em simbiose com o arcabouço legal público.

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O presente artigo objetiva analisar a Moratória da Soja sob uma ótica jurídica, económica e socioambiental integrada, investigando sua conformidade e suporte no ordenamento pátrio, sua operacionalização pelo Grupo de Trabalho da Soja (GTS), seu impacto na economia de exportação e seus desdobramentos perante os novos comandos do direito internacional ambiental, com especial ênfase no papel catalisador da COP30 e nos riscos jurídico-ambientais decorrentes da oposição setorial liderada pela Aprosoja.

A Moratória da Soja é, em sua essência, um acordo de vontades (contrato sui generis ou pacto setorial) celebrado entre associações de classe (Abiove e Anec), empresas traders, organizações da sociedade civil e, com atuação mediadora do Poder Público. Sua natureza jurídica pode ser classificada como um instrumento de governança privada transnacional, que atua em estrita conexão com a legislação ambiental brasileira.

O seu principal suporte legal encontra-se no Código Florestal (Lei 12.651/2012), que estabelece a obrigatoriedade da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente (APP). A Moratória atua de forma complementar e proativa, vedando a comercialização de soja oriunda de propriedades que, mesmo em desacordo com a lei, não estariam sujeitas a embargos estatais de forma imediata.

Trata-se, portanto, de um mecanismo de compliance ambiental ampliado, que antecipa e potencializa os efeitos da fiscalização oficial. Do ponto de vista principiológico, a Moratória é amparada pelo:

Princípio do Protetor-Recebedor: ao criar um mercado preferencial para produtores em conformidade, opera uma internalização de benefícios pela adoção de práticas conservacionistas.
Princípio da Prevenção: sua essência é preventiva, visando evitar o dano ambiental (desmatamento) antes que ele ocorra, e não apenas remediá-lo.
Princípio da Cooperação: exemplifica a cooperação entre o Público e o Privado para alcançar um fim constitucional comum: o meio ambiente ecologicamente equilibrado (Art. 225, CF/88).

A eficácia do acordo é garantida por um sofisticado sistema de verificação, que se vale de ferramentas previstas e fomentadas pela lei:

Monitoramento por satélite: utiliza dados oficiais do Prodes/INPE e do Deter, corroborando a licitude da atuação das partes com base em informações públicas e técnicas. Este monitoramento independe da capacidade operacional do Estado, constituindo uma fiscalização complementar privada.
Cadastro Ambiental Rural (CAR): o CAR, instituído pelo Código Florestal como registro público eletrônico obrigatório, tornou-se a espinha dorsal da rastreabilidade. As empresas signatárias condicionam a aquisição ao cruzamento de dados do CAR do fornecedor com os polígonos de desmatamento, criando um dever de diligência (due diligence) privado que se antecipa à fiscalização estatal.
Atuação do GTS: o Grupo de Trabalho da Soja, como instância de governança, opera por meio de amostragens e auditorias. A identificação de irregularidades resulta na rejeição comercial do produto e no encaminhamento de relatórios ao Ibama, configurando um fluxo de cooperação público-privada para repressão a ilícitos ambientais, nos termos do Art. 23 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98).

Os dados mais recentes fornecidos pela Abiove (referentes ao monitoramento da safra 2023/2024) demonstram a notória e contínua eficácia do acordo. O relatório de 2024 consolida os seguintes avanços:

Área monitorada: 7,47 milhões de hectares cultivados com soja no bioma Amazônia.
Desmatamento recente: Apenas 4.226 hectares de soja foram identificados em áreas desmatadas após julho de 2008, o que representa apenas 0,06% da área total cultivada no bioma.
Efeito inibidor: Desde sua implementação em 2006, a Moratória evitou o desmatamento de aproximadamente 18 mil km² de floresta amazônica. Para se ter uma dimensão, esta área é superior ao território de países como Kuwait ou Jamaica.
Intensificação sustentável: O crescimento da produção deu-se majoritariamente sobre áreas já antropizadas, através do ganho de produtividade, em consonância com o princípio da função socioambiental da propriedade (Art. 186, II, da CF/88).

Do ponto de vista das obrigações internacionais, a Moratória consolida-se como instrumento central para o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris (submetido por meio da Lei 13.460/2017) e na Declaração de Glasgow. Ao evitar a emissão de gases de efeito estufa por desmatamento, o acordo contribui diretamente para a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.

Economicamente, a Moratória transformou-se de um custo de compliance em um ativo de mercado. A soja produzida sob seu regime é um passaporte para mercados internacionais cada vez mais seletivos.

Valor da produção: a soja gerou uma receita de US$ 146,2 bilhões em exportações nos últimos cinco anos (Abiove, 2024).

Acesso ao Mercado Europeu: a União Europeia, que importa cerca de 12% da soja brasileira, é um mercado de alto valor, sensível a questões ambientais. O Regulamento (UE) 2023/1115 sobre commodities livres de desmatamento torna a Moratória não mais uma opção, mas uma condição sine qua non para a manutenção deste fluxo comercial.

Segurança jurídica para investidores: a adesão ao acordo mitiga riscos reputacionais e legais para as traders e investidores institucionais, atraindo capital para uma cadeia percebida como sustentável.

Apesar do sucesso, a Moratória enfrenta desafios jurídicos e geopolíticos complexos:

A ofensiva da Aprosoja e o Princípio da Não Regressão: A campanha liderada pela Aprosoja pelo fim da Moratória representa uma ameaça concreta de retrocesso ambiental. O Princípio da Proibição de Retrocesso Ecológico, embora não expresso em lei, é amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência como corolário do Princípio da Prevenção.

O desmonte de um instrumento de eficácia comprovada como a Moratória, sem a apresentação de um substituto à altura, configuraria violação a este princípio, podendo gerar até mesmo litígios perante o Supremo Tribunal Federal (STF) sob a argumentação de afronta ao Art. 225 da CF.

A questão do bioma Cerrado: A maior fragilidade estratégica é a não extensão do pacto ao bioma Cerrado. Enquanto na Amazônia a Moratória monitora 7,47 milhões de hectares, o Matopiba (região do Cerrado) concentra grandes frentes de expansão sobre vegetação nativa, muitas vezes legalmente permitida pelo Código Florestal, mas incompatível com as metas climáticas. A criação de um instrumento similar é imperativa para a sustentabilidade jurídica da cadeia exportadora, sob pena de a soja do Cerrado se tornar a nova “soja suja” no imaginário internacional.

O papel da China e a due diligence transnacional: A China compra aproximadamente 70% da soja brasileira. Embora historicamente não impusesse barreiras ambientais, a assinatura de memorandos bilaterais sobre sustentabilidade e as declarações recentes de que consideram adotar regras similares às europeias indicam uma mudança de postura. A Moratória posiciona o Brasil de forma vantajosa nesta transição global.

A importância estratégica da COP30: A realização da conferência em Belém é um evento de consequências jurídico-diplomáticas profundas. O Brasil terá a oportunidade de:

Institucionalizar o modelo: Propor a Moratória como um padrão reconhecido internacionalmente, um soft law que pode influenciar futuros tratados.

Ancorar compromissos: Anunciar a expansão da Moratória para o Cerrado como uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) ampliada, dando concretude às metas do Acordo de Paris.

A Moratória da Soja consagrou-se como um instrumento jurídico-institucional inovador, cuja eficácia é comprovada por dados socioeconômicos e ambientais robustos. Ela personifica a evolução de um paradigma onde a sustentabilidade deixa de ser um custo operacional para se tornar o principal ativo competitivo do agronegócio brasileiro no século 21.

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Sua arquitetura de regulação híbrida mostrou-se não apenas compatível com o ordenamento jurídico pátrio, mas também potente aliada na efetivação de políticas públicas ambientais. Neste contexto, os ataques promovidos pela Aprosoja representam um risco claro de retrocesso socioambiental e econômico, ameaçando solapar uma das mais bem-sucedidas políticas de compatibilização entre produção e preservação e colocando em xeque a credibilidade internacional do país.

O principal desafio que se coloca, portanto, é a defesa intransigente e o aprimoramento da Moratória existente, sua urgente expansão para o bioma Cerrado e a sua utilização como peça central na estratégia brasileira durante a COP30. O futuro do agronegócio como potência econômica sustentável depende da capacidade de compreender que a Moratória não é uma ameaça, mas sim o seu mais importante escudo jurídico-comercial em um mundo que exige, cada vez mais, rastreabilidade e responsabilidade socioambiental.

BRASIL. Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012. Código Florestal.

ABIOVE. (2024). Relatório de Monitoramento da Moratória da Soja – Safra 2023/2024. São Paulo: ABIOVE.

ABIOVE. (2024). Estatísticas de Exportação de Soja. São Paulo: ABIOVE.

UNIÃO EUROPEIA. Regulamento (UE) 2023/1115 relativo à disponibilização no mercado da União e à exportação da União de determinadas mercadorias e produtos associados ao desmatamento e à degradação florestal.

APROSOJA BRASIL. (2024). Nota Pública pela Revogação da Moratória da Soja.

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