O ocaso do constitucionalismo no Brasil visto por um estrangeiro

A História é implacável e não olha para o passado. Desde o final de 2024, venho tendo a oportunidade de ler obras que procuram revivescer o período político do Brasil compreendido entre o fim da República Velha e o término da Segunda Guerra Mundial.

É sabido, em termos de tempo universal, que a fase entre as duas guerras mundiais foi complicada politicamente. Basta ver o crescimento do totalitarismo de direita na Europa que, iniciado com a ascensão de Mussolini ao poder, expandiu-se consideravelmente para outros países, como uma alternativa defendida para o fim de isolar o regime soviético, diante do que se denominou como fracasso da democracia liberal.

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Entre nós, vivenciamos, de 1930 a 1945, a fase conhecida como a Era Vargas, a qual, ainda inçada de obscuridade, aos poucos vem sendo descortinada sob o prisma de sua conformação com o Estado de Direito.

A leitura à qual antes me referi foi a dos livros “Juristas em resistência”, de Antônio Pedro Melchior (Contracorrente), “Trincheira Tropical”, de Ruy Castro (Editora Schwarcz) e “O Brasil sob Vargas”, de Karl Loewenstein (Contracorrente). Embora todos contenham uma satisfatória abordagem, chamou-me a atenção, com mais afinco, o terceiro.

Não que estrangeiros não possam desenvolver análises sobre temas brasilianos, especialmente jurídico-políticos. Tanto assim é possível que se tornou clássico o “El mandato de seguridad brasileño, visto por un extranjero”, de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo (disponível em: https://biblio.juridicas.unam.mx/bjv).

Porém, quanto a Loewenstein, há uma significação especial. O seu trabalho, preponderantemente uma comparação em torno de ciência política, descortinou singularidades não somente do cenário jurídico, mas igualmente sobre fatos políticos e assuntos econômicos, sobre os quais são carecedoras as abordagens dos autores pátrios. Isso sem contar a revelação de acontecimentos que, embora tivessem lugar nestas plagas, para a quase totalidade dos brasileiros, ainda permaneciam desconhecidos.

A apreciação do texto, antecedida por prefácio de Gilberto Bercovici, bem assim de estudo introdutório por Luís Rosenfield, é assaz empolgante. Um dos maiores constitucionalistas da centúria passada, Loewenstein, judeu alemão que emigrara para o Estados Unidos em 1933, realizou um intercâmbio cultural no Brasil nos meses de fevereiro a setembro de 1941, sob o patrocínio da doutrina Monroe à feição Roosevelt que, ao invés de brandir “o porrete”, estendia-nos a mão amiga.

Daí resultou o livro que, infelizmente, não recebeu da censura, a cargo do Departamento de Imprensa e Propaganda, permissão para circular no Brasil, a despeito de várias iniciativas, o que não impediu que juristas brasileiros a ele tivessem acesso, como foi o caso de Miguel Reale e de Haroldo Valladão. O primeiro, inclusive, fez inúmeras anotações no seu exemplar.

Da primeira página em diante, percebe-se do autor uma enorme capacidade no trato do tema, juntamente com uma extrema habilidade interpretativa da nossa realidade. Após tecer considerações sobre a nossa história constitucional entre 1824 até a Constituição de 1934, fez uma densa e completa exposição sobre a Lei Constitucional de 1937, a qual denominou de constituição fantasma (ghost Constitution), dissecando os seus aspectos estruturais, inclusive e principalmente sob o prisma dos fatores reais de poder.

Chama atenção a anatomia do Decreto-lei 1.202/39, o qual materializou a supressão do federalismo entre 1937 a 1945. Não tendo sido um mal aluno, e hoje já possuindo quase quatro décadas de bacharel, não li – nem mesmo tive notícia – de doutrinador pátrio que nos explicasse, descritivamente, as relações entre a União e os entes federados naquele período, expondo os aspectos da estrutura político-administrativa destes. Loewenstein assim o fez, indo o seu enfoque além do direito positivo, para procurar estabelecer uma comparação com o modelo implantado pela Alemanha nazista em 1939, então sob a vigência formal da Constituição de Weimar.

O exame do autor perpassou por vastos e inúmeros assuntos, numa completude que, mais uma vez insisto em afirmar, não se encontra em nossa doutrina constitucionalista. Trouxe à tona fatos silenciados até o presente momento, mostrando como uma determinada fase da história do Brasil ainda permanece desconhecida das gerações anteriores e das futuras.

O perfil do cientista se manifestou no decorrer da obra, relevado pela pretensão à exatidão com a qual trabalhava os diversos conceitos, sendo de notar a abordagem sobre o colorido ideológico do regime, tendo em vista a coincidência ou não com o fascismo.

Os aspectos econômicos que permearam o governo Vargas, inclusive quanto ao seu laivo transformador, foram racionalmente analisados. A personalidade do governante também não escapou da análise do escritor.

Para o bom êxito da comparação que realizava, Loewenstein não se isolou com o manancial jurídico. Procurou, ao contrário, assimilar a cultura brasileira[1], tanto que ousou, numa comparação com os EUA, país que mencionava como sendo o seu, que, “sociologicamente, o Brasil é uma  terra de juristas, assim como a nossa civilização é caracterizada pelo homem de negócios”[2]. E, ao que consta, sem haver lido Sérgio Buarque de Holanda[3].

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Indispensável para que se possa conhecer o nosso direito político, o texto, nas suas quase 400 páginas, surpreende-nos a cada instante, sendo um livro para se ler com vagar, refletindo.

Se o conteúdo do escrito não agradou aos defensores do regime político de então, tanto que proibida a sua importação, parece que também desgostou aos seus opositores. No entanto, para desfazer a decepção dos últimos, o autor, em carta a Frank Tannenbaumn, disse, com relação aos seus amigos brasileiros, que, se “bem versados na arte essencial da leitura das entrelinhas, não deixaram de notar o tom irônico que acompanhou meus elogios”.[4]

[1] Encontrava-se, portanto, sintonizado à tendência exposta por Legrand: “Para os estudos jurídicos comparativos, valorizar o direito-como-cultura atesta o cometimento para com uma unidade de análise que não mais considera os aspectos técnicos do Direito posto como o centro controlador da ação interpretativas e isso inclui o direito-na-situação” (LEGRAND, Pierre. Direito comparado – compreendendo a compreendê-lo. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 125. Tradução de Ricardo Martins Spíndola Diniz).

[2] LOEWENSTEIN, Karl. O Brasil sob Vargas. São Paulo: Contracorrente, 2025, p. 428. Tradução de Pedro Davoglio).

[3] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição crítica. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 135. Org.: MONTEIRO, Pedro Moreira; SCHWARCZ, Lília.

[4] LOEWENSTEIN, Karl. O Brasil sob Vargas. São Paulo: Contracorrente, 2025, p. 27-28. Tradução de Pedro Davoglio).

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