A ofensa ao professor no Brasil
Ser professor no Brasil tornou-se equivalente a ofensa. Não é exagero retórico. É constatação empírica. A recente divulgação, pelo portal Metrópoles, de trocas de mensagens entre membros do Ministério Público de São Paulo expôs um sintoma profundo do desprezo estrutural pelo magistério.
Em um grupo de WhatsApp chamado “Equiparação Já”, procuradores reclamam não ganhar o mesmo que magistrados do TJSP e dizem ver “amigos juízes andando de Porsche”, enquanto eles não teriam condições de “acompanhar esse padrão”.
A conversa termina com um trocadilho: “agora estamos em uma classe social inferior… estamos nos tornando igual a magis… magistério”. O sentido é inequívoco: parecer-se com professores, ou seja, “ganhar como eles”, “viver como eles”, seria uma forma de rebaixamento social. A docência como sinônimo de inferioridade.
Na esfera política, outro episódio se soma a esse desprezo institucionalizado. Em Santa Catarina, o deputado estadual Oscar Gutz (PL) atacou a vereadora Meri Hang (PSD) dizendo que, “até ontem, ela não era ninguém, era só uma professora”. O ataque, registrado em sessão pública, expõe a ideia de que exercer o magistério é “não ser nada”, de que o caminho do serviço público vale mais que quem ensina.
O paradoxo dos que deveriam defender a educação
O Ministério Público, cuja Constituição encarrega de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais, deveria ser o primeiro a defender a educação como direito fundamental (art. 205, CRFB/88).
Mas, nas mensagens reveladas ao público, alguns de seus membros, o procurador de Justiça Márcio Sérgio Christiano, a procuradora Valéria Maiolini, demonstram justamente o oposto: desprezo por aquele que é o núcleo de qualquer educação possível – o professor.
Sem professores, nenhum dos participantes daquelas conversas teria chegado ao ensino superior, ao bacharelado, ao concurso público, ao prestígio institucional e à remuneração mensal muito acima dos R$ 46 mil mensais.
A ironia é gritante: a instituição que deveria promover a educação – e, portanto, valorizar o professor – naturaliza o rebaixamento simbólico da docência. E que não se diga que esses procuradores são uma minoria que não representam a instituição MPSP. Afinal de contas, eles são a instituição.
Membros do MP só são membros porque compõem e conformam a instituição. Eles são o próprio MP. Eles sabem disso, tornou-se até pergunta de concurso para ingresso no MP: membros do MP não representam o MP, eles presentam o Ministério Público porque são membros, integrantes, do MP.
No caso catarinense, o parlamentar que representa o povo encontra em “professora” o insulto mais contundente contra sua adversária política. O representante do povo, o agente do Estado, que deveria zelar pela elevação educacional da sociedade, opta por degradar o ofício de quem constrói essa elevação.
A unanimidade retórica e o abandono prático
Vivemos um tempo curioso: todos repetem que ciência, educação e tecnologia são o único caminho capaz de tirar o Brasil do subdesenvolvimento. Mas, ninguém financia a educação de forma minimamente proporcional à responsabilidade que ela carrega.
O piso salarial dos professores da educação básica é hoje de R$ 4.867,77 para 40 horas semanais. Já os membros do Ministério Público, tanto estaduais quanto federais, receberam acima do teto constitucional em cerca de 98% dos casos em 2024, segundo estudo público feito pela Transparência Brasil. Para ficarmos no MPSP, a reportagem do Metrópoles informa que os membros do MP que se disseram pertencentes a uma classe inferior como a dos professores ganharam mais de R$ 70 mil.
O contraste é chocante: um procurador pode ganhar, no mínimo, aproximadamente dez vezes mais que um professor de educação básica, cerca de sete vezes mais do que um professor doutor que leciona e pesquisa em universidades públicas.
Na formação jurídica universitária, observo isso diariamente. A cada semestre, na UFPR ou na UnB, pergunto no primeiro dia de aula aos alunos que carreira pretendem seguir. Em média, 70% querem concursos jurídicos; na UnB, o índice chega facilmente a 90%. O restante divide-se entre advocacia e carreira diplomática. Nunca, em anos de docência, ouvi um aluno responder espontaneamente: “quero ser professor”.
A docência não aparece como horizonte profissional possível porque a sociedade ensinou que ela vale pouco.
O incômodo necessário
Por tudo isso, retorno ao início. Quando um procurador se diz “rebaixado” por se aproximar do “magistério”, ele expõe não o professor, mas a si mesmo. Quando um deputado estadual insulta sua interlocutora chamando-a de “só professora”, ele insulta a própria ideia de sociedade.
Convém perguntar:
Ao Ministério Público de São Paulo: como defender a ordem jurídica se desprezam quem forma o cidadão?
Ao deputado Oscar Gutz (PL-SC): se “ser professora” é ser ninguém, então quem o ensinou a ler era o quê?
E ao leitor: o que significa, para você, que a profissão responsável por tudo o que você sabe, inclusive sua capacidade de interpretar este texto, seja tratada como xingamento?
Se a educação vale pouco, o que vale o futuro? Se o professor é nada, o que resta da República?
E, sobretudo: que país continua de pé quando os que deveriam elevá-lo acham graça em rebaixar quem o sustenta?