Representação política feminina e justiça fiscal: uma aproximação ao tema

Em outubro, mês em que a Constituição Federal de 1988 completou 37 anos e em que se celebra o Dia da Democracia (25 de outubro), discutir o papel das mulheres na política é mais do que uma homenagem simbólica, é um exercício de cidadania e de análise crítica das estruturas de poder. Esse foi um dos temas debatidos no IV Coniteg (Congresso Internacional de Tributação e Gênero), ocorrido nos dias 29, 30 e 31 de outubro.

Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)[1], as mulheres representam 53% do eleitorado nacional, constituem cerca de 34% das candidaturas, mas ocupam apenas 17% das cadeiras no Parlamento.

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Essa assimetria não é fruto do acaso: resulta de uma estrutura política e cultural que historicamente exclui as mulheres dos “assuntos sérios”, como a economia, o orçamento e a tributação, campos tradicionalmente associados ao poder masculino.

Pierre Bourdieu denominou esse fenômeno de dominação masculina, um tipo de violência simbólica que, sob a aparência de naturalidade, define os lugares de homens e mulheres na vida social. Para o autor, as mulheres foram “excluídas do universo das coisas sérias, dos assuntos públicos e, mais especialmente, dos econômicos” (2012, p. 116)[2], confinadas ao espaço doméstico e reprodutivo.

Historicamente, a luta das mulheres por representação política esteve intimamente ligada à questão tributária. No movimento sufragista do século 19, difundiu-se o lema “no taxation without representation”, não à tributação sem representação. No Reino Unido, as mulheres puderam votar pela primeira vez em fevereiro de 1918, ainda assim somente as maiores de 30 anos, graças à campanha encabeçada pelas Suffragettes.

No Brasil, as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1932, por meio do Decreto 21.076, e puderam votar e ser votadas pela primeira vez na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte de 1933. Com a promulgação da Constituição brasileira de 1934, o voto feminino foi consagrado constitucionalmente.

Mas antes dessa conquista, uma mulher fez história no Brasil. A professora Celina Guimarães Vianna, natural de Natal (RN), foi a primeira eleitora do país, tendo se alistado em 1927 com base em lei estadual que eliminava distinções de sexo para o exercício do voto. Celina ajuizou uma ação requerendo sua inclusão na lista de eleitores do Estado. “Ao receber do juiz um parecer favorável, apelou ao presidente do Senado Federal para que todas as mulheres tivessem o mesmo direito”[3]. Sua coragem simboliza a gênese da cidadania política feminina brasileira.

No Brasil, a Lei 9.504/1997 garante a cota mínima de 30% e máxima de 70% de candidaturas por sexo, assegurando um mínimo de representação política das mulheres. A medida foi um avanço normativo, mas sua eficácia prática ainda é limitada. O simples preenchimento de cotas não garante poder real, nem voz nas instâncias de decisão. É comum que as mulheres sejam incluídas apenas para cumprir formalidades partidárias, sem acesso a recursos de campanha ou estrutura política compatível com seus pares masculinos. Representar, portanto, não basta: é preciso participar, influenciar, deliberar.

Um episódio recente ilustra bem essa exclusão institucional. Quando o presidente da Câmara dos Deputados criou o grupo de trabalho para discutir a reforma tributária, que foi tema central na agenda econômica nacional, nenhuma das 91 deputadas federais eleitas foi incluída entre os 12 membros designados[4]. A justificativa apresentada foi que “as mulheres não se interessavam pelo tema”.

Essa afirmação, além de falaciosa, reforça estereótipos de gênero que naturalizam a ausência feminina nas decisões que estruturam o Estado. Após várias reivindicações, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP) foi incluída no grupo de trabalho.

Apesar desses marcos, o avanço na representatividade tem sido tímido. Em 2016, o Brasil ocupava a 152ª posição no ranking mundial de presença feminina no Parlamento, com apenas 9,9% das cadeiras ocupadas por mulheres, enquanto a média global era de 20,9%. Em 2024, segundo a União Interparlamentar (IPU)[5], a média mundial alcançou 25,9%, e o Brasil atingiu 17%. Em primeiro lugar nesse ranking, aparece Ruanda, com 63,7% de mulheres no parlamento. Mas as razões que levaram a esse número são tema para outro artigo.

A sub-representação feminina não é apenas um problema de estatística ou de imagem democrática: ela impacta diretamente a formulação de políticas públicas. Quando as mulheres estão ausentes, a política fiscal tende a ignorar desigualdades de gênero e a perpetuar estruturas regressivas. Nancy Fraser (2002)[6] demonstra que a justiça social depende de três dimensões interligadas: redistribuição econômica, reconhecimento cultural e representação política. A exclusão das mulheres em qualquer dessas esferas corrói o ideal democrático e impede a construção de políticas verdadeiramente equitativas[7].

Dois exemplos evidenciam o poder transformador da presença feminina na política brasileira. O primeiro é o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, que previa a distribuição gratuita de absorventes higiênicos para mulheres em situação de vulnerabilidade. O segundo exemplo é o auxílio emergencial instituído durante a pandemia de Covid-19. A proposta original do Congresso previa valor dobrado para mulheres chefes de família monoparental, reconhecendo sua vulnerabilidade socioeconômica.

Não obstante esses avanços pontuais, a sub-representação feminina segue visível nas instâncias de poder. As mulheres ocuparam menos de 10% dos cargos de comando no Congresso Nacional. Nunca houve uma mulher presidente da Câmara ou do Senado. Dos 121 cargos de liderança disponíveis na Câmara, apenas 10 foram ocupados por mulheres; no Senado, 11[8]. Essa ausência nos espaços de liderança legislativa reflete o que Bourdieu chamaria de “incorporação da dominação”, uma desigualdade internalizada que naturaliza a exclusão e limita o alcance das transformações.

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Superar esse quadro exige mais do que políticas afirmativas superficiais. Requer mudança estrutural, educação política e reforma partidária. É preciso investir em formação cívica, financiamento equitativo de campanhas e estímulo à liderança feminina em áreas tradicionalmente vistas como “masculinas”, como economia e direito tributário.

Também é essencial que os partidos abandonem a prática de registrar “candidaturas laranjas” apenas para cumprir a cota legal, uma distorção que desvirtua o propósito democrático da norma.

A democracia brasileira permanecerá incompleta enquanto metade da população continuar sub-representada nos espaços decisórios que definem as políticas públicas, inclusive as fiscais e redistributivas, pilares da justiça social.

[1] Disponível em https://www.justicaeleitoral.jus.br/tse-mulheres/. Acesso em 29 out 2025.
[2] BOURDIEU Pierre. A dominação masculina. 11ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil; 2012.
[3] TSE Mulheres. Disponível em https://www.justicaeleitoral.jus.br/tse-mulheres/. Acesso em 29 out 2025.
[4] GODOI BUSTAMANTE. Evanilda N. Participação política feminina e tributação. Women in Tax Brazil. Jota. São Paulo. 31mar2023, 2023. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/mulheres-participacao-politica-feminina-e-tributacao. Acesso em 29 out 2025.
[5] Dados copilados e divulgados pelo TSE Mulheres.
[6] FRASER, Nancy. A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista crítica de ciências sociais, n. 63, p. 07-20, 2002.
[7] REIS. Ana Clara G. B.; GODOI BUSTAMANTE. Evanilda N. A sub-representação feminina na câmara dos deputados brasileira: uma análise à luz da teoria tridimensional da justiça de Nancy Fraser. Disponível em https://site.conpedi.org.br/publicacoes/06n3kw94/s15rzm1l/88U32f24v522r54Z.pdf. Acesso em 29 out 2025.
[8] GODOI BUSTAMANTE. Evanilda N. Participação política feminina e tributação. Women in Tax Brazil. Jota. São Paulo. 31mar2023, 2023. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/women-in-tax-brazil/mulheres-participacao-politica-feminina-e-tributacao. Acesso em 29 out 2025.

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