Ao mesmo tempo em que ampliou o fenômeno da litigância abusiva por facilitar a propositura de ações, a Inteligência Artificial (IA) também tem sido um recurso usado por tribunais e empresas para combater o problema.
A litigância de má-fé é o abuso do direito de ação através do uso de fraudes, captura indevida de clientes ou outras práticas antiéticas. Quando feita de forma massiva, com a reiteração artificial de demandas, em número e frequência tão altos a ponto de virarem um assédio processual, ela passa a configurar a litigância predatória.
Para os setores mais afetados pelo problema (bancos, telecomunicações, companhias aéreas e varejo), a IA tem ajudado principalmente na filtragem dos processos.
Na Vero, empresa de telecom que atua em 425 cidades do Brasil, as ferramentas de IA ajudam a identificar os processos com indícios de litigância abusiva.
“Temos um time dedicado de contencioso e com ferramentas que a gente usa para filtrar padrões, advogados, causas de pedir, volumes muito altos em um curto espaço de tempo”, diz o diretor jurídico Flávio Rossini.
O próprio sistema já aponta processos suspeitos e os advogados, então, avaliam os resultados e tomam atitudes para mitigar o problema e, em caso de necessidade, denunciar práticas antiéticas à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Com os processos abusivos identificados, a empresa cria estratégias e atua em parceria com escritórios externos que lidam com o grosso do trabalho contencioso, especialmente por conta da capilaridade de sua atuação no Brasil todo. “Atuamos em 425 cidades, então podemos ser acionados em qualquer uma das comarcas”, explica Rossini.
As empresas ouvidas pelo JOTA afirmam que contratam escritórios para lidar com os processos contenciosos em massa e eles acabam ficando também responsáveis pelos processos abusivos. Mas há uma série de cuidados extras tomados pelos jurídicos internos das empresas.
O BMG atua em parceria com escritórios para lidar com o contencioso — abusivo ou não —, mas também tem estratégias internas para identificar casos de litigância predatória.
O banco usa sistemas de IA para identificar padrões e comportamentos suspeitos, mas também recorre a uma prática mais antiga: a ligação telefônica.
O banco entra em contato com clientes em processos em que há indício de litigância abusiva justamente para checar se o consumidor tem consciência do processo. Nos casos em que perde o processo, o banco procura o cliente para verificar se ele recebeu o dinheiro. “Já encontramos casos em que o advogado não repassou o valor da causa para o cliente”, conta o advogado Augusto de Abreu, gerente jurídico de contencioso do banco BMG.
A empresa também usa IA para fazer análises documentais aprofundadas dos processos para verificar a autenticidade de comprovantes e procurações.
Diferenciando os casos
Para Elias Marques de Medeiros, sócio do escritório TozziniFreire, o uso de IA já afeta a advocacia em todos os setores, e não é diferente quando o tema é a propositura de ações abusivas.
“Eu não tenho dúvida que talvez essa facilidade maior de criação de peças processuais pode ser, um dos elementos que justifiquem essa entrada massiva de casos, que realmente é uma entrada recorde em 2024″, afirma.
Em 2024, o número de novos processos (total, não somente os abusivos) foi de 39,4 milhões, de acordo com dados do Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. O volume aumentou 11,93% em relação a 2023, quando o número de novos processos foi de 35,2 milhões. Em 2022, os novos processos somaram 31,5 milhões, o que indica um crescimento consistente ao longo dos últimos anos.
“Por outro lado, a mesma inteligência artificial pode ser um dos elementos que justifiquem um aumento gritante de produtividade do Poder Judiciário, que encerrou mais de 44,8 milhões de processos no mesmo ano”, afirma Medeiros. Foi um aumento de 28% em produtividade em relação a 2023, quando o número de processos encerrados foi de quase 35 milhões.
Ele lembra, no entanto, que litigância em massa não é o mesmo que litigância predatória. “O ajuizamento massivo de ações da mesma natureza e de partes distintas, por si só, não caracteriza a litigância abusiva”, explica Medeiros. “Às vezes, você tem realmente demandas legítimas que precisam ser enfrentadas.”
A recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) 159/2024 lista uma série de exemplos de condutas que podem configurar litigância abusiva.
Entre elas, estão desistência de ações quando a parte é notificada para comprovar fatos alegados na petição inicial; submissão de documentos com dados incompletos, ilegíveis ou fraudados; distribuição de petições iniciais com informações genéricas e causas de pedir idênticas, diferenciadas apenas pelos dados pessoais das partes envolvidas.
Como explica o próprio CNJ, muitas das condutas podem não ser abusivas por si só, mas configuram litigância predatória quando observadas com frequência e em conjunto umas com as outras.
A litigância abusiva afeta mais, em geral, setores que naturalmente já lidam com um alto número de demandas no Judiciário. Nesse contexto, diferenciar as demandas abusivas das legítimas se torna central para as empresas adaptarem suas estratégias de ação.
As empresas que lidam com números massivos de processos reconhecem que, concordando ou não com a demanda, há muitas ações legítimas.
Mas, ao mesmo tempo, afirmam, elas lidam diariamente com processos e condutas que se enquadram nos exemplos de possível litigância abusiva listados pelo CNJ.
“Infelizmente não é incomum a gente identificar situações com adulteração de comprovante de residência. Por exemplo, a mesma fatura de uma conta de telefone com o mesmo valor, mesmo código de barra, mesmo endereço e nomes diferentes”, diz o gerente jurídico de contencioso do BMG, Augusto de Abreu. “Ou mesmo procurações fraudulentas, em que as pessoas nem sabiam que havia um processo em seu nome.”
Segundo o BMG, foram identificados indícios de litigância abusiva em cerca de 40% das ações que o banco enfrenta , a maior parte na área do Direito do Consumidor.
Para ajudar as empresas a diferenciar os processos legítimos dos abusivos, os algoritmos de IA podem fazer análises comportamentais para verificar esses indícios. Isso inclui a detecção de ações em volumes muito altos em curto espaço de tempo; identificação de advogados ou escritórios que representam um número desproporcional de casos com causa de pedir idênticas e que apresentam alto índice de desistência após notificação e mapeamento de distribuição de processos em comarcas específicas com baixo volume de clientes da empresa.
Sistemas de IA também podem processar o texto das petições para identificar iniciais genéricas, diferenciadas apenas pelos dados pessoais das partes; e comparar a linguagem e a estrutura das peças.
Um estudo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) deste ano identificou como abusivas 700 mil ações contra oito bancos em dois anos (entre 2022 e 2024).
Embora o índice de sucesso contra esse tipo de demanda seja alto (cerca de 90%), elas geram congestionamento dos tribunais, desvio de foco e altos custos de litigância para as empresas e de administração para o Judiciário, independentemente do mérito. Segundo a pesquisa, só a administração desses 700 mil processos custou cerca de R$ 800 milhões.
No voto com a proposta que se tornou a recomendação 159 do CNJ, o ministro aposentado Luís Roberto Barroso, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a litigância predatória impacta o desenvolvimento econômico do país e prejudica o acesso à Justiça.
“A atuação do CNJ e dos tribunais é fundamental para que a movimentação da máquina judiciária ocorra sem desvio de finalidade e para assegurar que seus esforços humanos e recursos materiais sejam direcionados à garantia do acesso à Justiça aos que efetivamente dela necessitam”, escreveu Barroso.
Buscando o equilíbrio
O equilíbrio entre o acesso à Justiça, as prerrogativas de atuação dos advogados e o combate à litigância predatória é delicado, avalia Medeiros, do TozziniFreire.
“Os critérios para identificar se realmente temos uma infração ética ou não precisam ser estudados de uma maneira bem depurada, até porque, não podemos usar um remédio que acabe sendo um veneno, que impossibilite o exercício da advocacia. Mas sem dúvida os órgãos de classe precisam tomar conta do tema com bastante profundidade”, diz o advogado.
Para Gustavo Leal, diretor jurídico da rede de farmácias Pague Menos, fazer representações contra advogados que eventualmente estejam agindo de forma antiética não é uma forma eficiente de combater o problema.
“Claro que a representação precisa ser feita. Mas o processo é demorado e, mesmo que haja alguma sanção, essa medida apenas ataca a ponta do iceberg, pois o advogado pode ser substituído por outro, e a estrutura do problema permanece”, diz ele, que afirma apostar mais em medidas preventivas.
Segundo ele, há uma série de medidas preventivas que podem ser tomadas, como entender como está sendo feita a captura indevida de clientes pelos advogados ou como eles estão tendo acesso aos dados dos clientes, por exemplo.
“É preciso ter uma tolerância zero com erros internos que possam vazar dados”, afirma. “Também é necessário trabalhar de perto com os escritórios para que os processos sejam tratados com zelo, diminuindo perdas e abrindo menos portas para a fraude.”
Segundo ele, muitos advogados que fazem litigância predatória apostam em ter vitórias com eventuais revelias contra empresas que recebem processos em massa. “Então eles olham, ‘ah, essa empresa teve algumas revelias, vamos entrar com muitos processos e algum eventualmente tem uma revelia e passa’”, diz ele. “Porque o custo de demandar é barato, o custo de se defender é mais caro.”
A OAB diz que tem trabalhado em conjunto com o Poder Judiciário para enfrentar o problema. Em São Paulo, a entidade criou uma Coordenadoria de Processamento de Representação e Processo Disciplinar para agilizar a análise de representações éticas e também criou uma definição própria do que configura litigância abusiva.
O Judiciário, por sua vez, tem tentado integrar o avanço tecnológico a um sistema que preserve o acesso enquanto pune o abuso. No setor aéreo, por exemplo, o CNJ criou, em parceria com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), um serviço de comunicação eletrônica que permite aos magistrados acessar informações sobre voos comerciais, como horários previstos e realizados, pontualidade e regularidade, itinerário, além de condições meteorológicas e operacionais dos aeroportos. O objetivo é facilitar a checagem de alegações em processos no setor, que lida com muitas demandas de Direito do Consumidor, incluindo um alto número de demandas legítimas.