Em poucos anos, a inteligência artificial deixou de ser promessa para se tornar infraestrutura. Plataformas digitais, fintechs, healthtechs, marketplaces e uma gama crescente de startups reorganizaram sua operação em torno de modelos algorítmicos, pipelines de dados e sistemas de automação que atravessam toda a cadeia de valor: da concepção do produto à relação com o cliente. Em muitos casos, não há negócio sem IA.
Ao mesmo tempo, o sistema tributário caminha para uma mudança estrutural. A reforma do consumo tornou real a substituição paulatina do PIS e da Cofins por uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), em regime de transição que se estende até a próxima década. O modelo que vigorou por mais de vinte anos – com sua conhecida litigiosidade em torno do conceito de insumo – passa a ter data de validade.
É nesse encontro entre fim de ciclo e reconfiguração tecnológica que surge uma questão que pode ser a última grande controvérsia interpretativa do PIS/Cofins: até que ponto gastos com inteligência artificial podem ser considerados insumos, aptos a gerar créditos no regime não cumulativo?
Do conceito de insumo ao novo ambiente digital
A jurisprudência consolidada do STJ, a partir do REsp 1.221.170, deslocou o eixo da discussão sobre insumos da rigidez literal para um critério funcional, pautado pela essencialidade e pela relevância do bem ou serviço no processo produtivo ou na prestação do serviço.
Em síntese, são insumos: (i) os bens e serviços sem os quais a atividade não se realiza ou (ii) aqueles cuja ausência compromete de forma significativa a qualidade, a viabilidade ou a regularidade do produto ou serviço oferecido.
Essa definição, construída para resolver impasses concretos em setores como indústria, agronegócio e serviços tradicionais, agora se vê desafiada por uma realidade diferente. Em empresas de base tecnológica, o “processo produtivo” já não é, necessariamente, uma linha de montagem física, mas um conjunto de operações de captura, tratamento e exploração de dados, muitas vezes em tempo real.
No ambiente digital, a inteligência artificial pode ocupar lugares distintos: (i) como núcleo do produto (por exemplo, uma plataforma cujo serviço vendido é o próprio modelo preditivo ou o motor de recomendação); (ii) como infraestrutura indispensável de operação (sistemas de IA que viabilizam análise de risco, antifraude, atendimento automatizado em grande escala ou personalização de ofertas); (iii) como camada estratégica de dados, sem a qual não há como extrair valor econômico do volume de informações disponíveis. Nessas situações, é legítimo discutir se o investimento em IA deve ser considerado insumo.
Quando a IA deixa de ser diferencial e se torna insumo
Em grande parte do ecossistema de tecnologia, a retórica de que “IA é diferencial competitivo” já ficou para trás. Alguns exemplos são claros: (i) fintechs, em que a avaliação de risco, a detecção de fraude e o compliance automatizado dependem de modelos de machine learning; (ii) healthtechs, que usam algoritmos para apoiar diagnósticos, priorizar filas, sugerir condutas ou monitorar pacientes; (iii) SaaS de análise de dados, em que o valor percebido pelo cliente está diretamente ligado à capacidade do sistema de gerar insights automatizados; e (iv) marketplaces e plataformas de conteúdo, cuja experiência do usuário é totalmente mediada por motores de recomendação.
Nesses casos, modelos, APIs, licenças de uso de plataformas de IA, custos de treinamento de modelos proprietários, infraestrutura contratada especificamente para processamento algorítmico e serviços especializados de ajuste e monitoramento deixam de ser gastos periféricos, à medida em que integram o custo de produção do serviço ou a formação do bem digital oferecido ao mercado.
Se a essência da noção de insumo é a relação de necessidade funcional entre o gasto e o resultado econômico produzido, é difícil negar que, nessas situações, a inteligência artificial se acomoda com naturalidade na moldura de essencialidade e relevância.
O regime de PIS/Cofins diante da IA: velhos conceitos, novos fatos
O regime não cumulativo do PIS/Cofins foi pensado para um ambiente produtivo marcado por cadeias lineares de produção de bens e prestação de serviços. Com o avanço da economia digital, setores inteiros passaram a gerar valor em processos intangíveis, baseados em dados, algoritmos e suporte em nuvem. A própria noção de “produto” tornou-se fluida: muitas vezes, o que se vende é o acesso contínuo a uma funcionalidade que depende da operação permanente de sistemas de IA.
Nesse contexto, a insistência em restringir insumos a gastos fisicamente tangíveis – ou a serviços com aparência de etapa clássica de produção – resulta em um descompasso entre o fato econômico e a tributação. O risco é que o regime não cumulativo, concebido para neutralizar a tributação em cascata, passe a produzir um acúmulo de carga em setores justamente mais intensivos em inovação.
O debate sobre créditos relacionados a IA é, portanto, menos uma busca por “novos benefícios” e mais um esforço para impedir que o regime se torne indiferente ao modo como a riqueza é, hoje, efetivamente gerada.
A reforma tributária e a janela estreita de debate
A reforma do consumo, ao prever a substituição gradual do PIS/Cofins pela CBS, tende a simplificar o desenho normativo e, ao menos em tese, reduzir as margens de litigiosidade sobre creditamento. A adoção de uma base ampla, com regra geral de não cumulatividade e mecanismos mais claros de devolução do tributo, pode diminuir disputas casuísticas.
Isso, entretanto, não elimina a necessidade de enfrentar, ainda sob o regime atual, a qualificação dos gastos com inteligência artificial. Há, pelo menos, duas razões para isso:
Impacto retroativo e transitório: muitos investimentos relevantes em IA já foram realizados ou estão em curso sob a égide do PIS/Cofins. A ausência de definição tende a empurrar a discussão para o contencioso, com efeitos que se projetam por anos, mesmo após o início da CBS.
Efeito pedagógico sobre o novo sistema: a forma como se interpretarão, agora, os critérios de essencialidade e relevância em relação à IA servirá de referência para a regulação infraconstitucional da CBS e para a construção de práticas administrativas e jurisprudenciais futuras.
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Em outras palavras, ainda que se esteja diante de um regime em extinção, o modo como essa última grande discussão for resolvida terá efeitos que ultrapassam o PIS/Cofins e alcançam o desenho do novo modelo.
No fim das contas, se o sistema tributário ainda tiver dúvidas sobre a essencialidade da inteligência artificial, talvez seja o caso de pedir ajuda justamente a ela. E se este for de fato o último grande capítulo do PIS/Cofins, vale torcer para que ele não termine com a mesma incoerência que marcou parte da sua história. Os contribuintes merecem um epílogo digno — e, quem sabe, até um plot twist favorável.