Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 1 bilhão de pessoas vivem em assentamentos irregulares no mundo. No Brasil, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 16 milhões de pessoas residem em favelas, onde é comum a ausência de infraestrutura de serviços públicos.
Embora o país disponha de vastos recursos hídricos, o acesso a eles é desigual. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), dos 203 milhões de brasileiros, apenas 171 milhões têm acesso ao abastecimento de água e 112 milhões ao esgotamento sanitário. A exclusão tem raça: enquanto 91% das pessoas amarelas e 83% das pessoas brancas têm acesso ao saneamento básico, apenas 75% de pretos, 68% de pardos e 29% de indígenas acessam o serviço.
A Lei nº 11.445/2007 (Marco Legal do Saneamento Básico – MLSB) foi concebida justamente para enfrentar esse cenário, ao estabelecer como princípio a universalização do acesso, com meta de atender, até 2033, 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto, objetivo que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III).
Contudo, a universalização permanece distante da realidade das periferias. Embora os índices nacionais de acesso alcancem 84,9% da população brasileira e 90,9% no Estado de São Paulo (SNIS), nas favelas o cenário é outro: o estudo “Saneamento Básico em áreas irregulares em São Paulo”, do Instituto Trata Brasil, concluiu que “apenas 17,3% dos assentamentos têm acesso à rede de abastecimento de água, mesmo que parcialmente”.
Sobre isso, o artista adverte:
“favela é um campo de concentração gigante […] não adianta vim com poema frásico, se na quebrada falta cesta básica e saneamento básico” (Nóis é Favela — MC Paulin da Capital, MC Tuto, MC Kadu e MC RN do Capão e DJ Books).
Dado o contexto, esse texto discute um dos entraves para a universalização do saneamento (aqui restrito ao serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário) relacionado às ocupações em terrenos “irregulares”.
Negativa de prestação do serviço
Recentemente, representei um morador de uma ocupação no Município de Suzano, em que a Prefeitura, reconhecendo o direito da comunidade, autorizou expressamente a ligação de água e esgoto. Ainda assim, a concessionária resistiu em cumprir a determinação, condicionando o atendimento à existência de ordem judicial. Em outras residências dessa ocupação, o serviço somente foi prestado após determinação do Poder Judiciário.
Mesmo diante de laudos técnicos da própria empresa que atestavam a plena viabilidade da ligação, a prestação do serviço foi negada sob o argumento de que faltaria “parecer jurídico interno” que autorizasse o atendimento, exigência manifestamente ilegal, que transfere ao consumidor o ônus da inércia burocrática da concessionária.
Essa ocupação ilustra um dos entraves relacionados à expansão do serviço: o desenho institucional precário da prestadora, incapaz de lidar com as realidades das ocupações em terrenos “irregulares”. Trata-se de um problema que não decorre da lei ou da ética de um indivíduo, mas de um desenho institucional cuja operação supostamente neutra é insensível às peculiaridades do caso concreto.
Discriminação institucional: impactos sobre a universalização
A recusa automática ao atendimento de ocupações em terrenos “irregulares”, ainda que tecnicamente possível a prestação do serviço, revela o quanto o aparato institucional pode operar com filtros de exclusão e produzir resultados discriminatórios.
Por mais que o MLSB preveja a universalização e que tal tarefa enfrente inúmeros desafios complexos, é difícil imaginar que a mera incapacidade institucional das concessionárias em compreender as peculiaridades dos territórios também se coloca como barreira à universalização.
Essa incapacidade institucional não é acidental: o mesmo processo social que cria as condições sociais que possibilitam a existência das favelas, o racismo estrutural, também impacta no desenho institucional das concessionárias de saneamento básico.
Segundo o IBGE: 26,6% da população favelada é branca e 72,9% é negra; e no mercado de trabalho, embora 53,8% dos trabalhadores sejam negros, eles ocupam apenas 29,5% dos cargos gerenciais, enquanto os brancos ocupam 69%.
Assim, se apenas 8,1% da população vive em favelas e, entre eles, a maioria é negra, junto ao fato de que negros são minoria em cargos gerenciais, a chance de um favelado ocupar cargo de decisão é remota.
É razoável inferir, portanto, que as direções das prestadoras de serviço de saneamento básico são compostas, em geral, por pessoas que não conhecem, na pele, a realidade da falta d’água. Disso decorre a realidade em que os procedimentos internos e as estratégias de universalização são pensados por quem está muito distante da realidade que visa superar.
A operação supostamente neutra dessas instituições ao aplicar critérios uniformes, ignorar as especificidades territoriais e negar a ligação da residência à rede de água e esgoto, acaba gerando o que Adilson Moreira denomina discriminação institucional: procedimentos supostamente neutros que perpetuam desigualdades estruturais.
A ausência de diversidade em cargos gerenciais impacta o desenho procedimental da prestação do serviço e, consequentemente, a busca pela universalização, pois, como dizem os Racionais “Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola” e são raras as vezes em que as pessoas formadas nessa escola ocupam cargos decisórios em corporações com instrumentos que podem melhorar a vida na periferia.
Universalizar para dignificar, incluir para universalizar
Estudos do Instituto Trata Brasil demonstram que o saneamento básico é um eixo estratégico para romper o ciclo de falta de moradia, lazer, renda, educação e vida digna, pois gera benefícios sociais e econômicos: valoriza imóveis, estimula o turismo, aumenta a produtividade e reduz custos com saúde.
O saneamento básico é, portanto, um vetor de justiça social. A universalização do saneamento é, para além de uma meta, parte de um projeto civilizatório de combate às desigualdades.
O caso de Suzano em que atuei e obtive êxito ao conseguir a ligação de água e esgoto para o meu cliente não é exceção, mas sintoma. Ele demonstra que a universalização do saneamento básico não esbarra apenas em entraves orçamentários ou urbanísticos, mas também é impactada por estruturas decisórias internas às prestadoras de serviço, formadas majoritariamente por pessoas que não se formaram na escola “da ponte pra cá”.
Considerando que “Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola” e que a formação capacita o profissional para identificar soluções mais eficazes e humanas para as deficiências institucionais, incluir negros e periféricos em cargos de gestão nas prestadoras de serviço impactará positivamente na construção de alternativas capazes de resolver problemas concretos.
Assim, entendo que um dos principais entraves à universalização do saneamento é a discriminação institucional, que restringe a expansão do serviço em ocupações consideradas “irregulares” e decorre da exclusão histórica e estrutural das populações que habitam esses territórios, exclusão que molda a própria relação entre o Estado, as concessionárias e as periferias.
Universalizar o saneamento básico é uma tarefa de concretização da dignidade da pessoa humana, fundamento da República consagrado pela Constituição Federal de 1988, e exige o aprimoramento das instituições públicas e privadas, de modo que atuem em favor da promoção do bem de todos, da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades.
Assim, somente quando o direito à água, acompanhado de todos os direitos fundamentais, alcançar a quebrada, poderemos dizer que o Brasil é, de fato, uma República fundada na dignidade da pessoa humana.